domingo, 20 de março de 2011

Quando voltei a Paris comprovei que estava intacto, pois a revolução de maio de 68, na realidade, não havia ultrapassado o perímetro do Quartier Latin e Saint Germain-des-Prés. Ao contrário do que muitos profetizaram naqueles dias de euforia, a coisa não teve maior transcendência política, exceto pelo fato de acelerar a queda de De Gaulle, inaugurando a breve era de cinco anos de Pompidou e revelando a existência de uma esquerda mais moderna que o Partido Comunista francês ("la crapule stalinienne", na expressão de Cohn-Bendit, um dos líderes de 68). Os costumes se tornaram mais livres, mas do ponto de vista cultural, com o desaparecimento de toda uma geração muito ilustre.
- Mauriac, Camus, Sartre, Aron, Merleau-Ponty, Malraux - ocorreu nesses anos uma discreta retração cultural. Em vez de criadores, os mattresepenser passaram a ser os críticos, estruturalistas primeiro, à maneira de Michel Foucault e Roland Barthes, e depois desconstrutivistas, tipo Gilles Deleuze e Jacques Derrida, de retóricas arrogantes e esotéricas, cada vez mais isolados em suas panelinhas de devotos e mais afastados do grande público, cuja vida cultural, em conseqüência dessa evolução, acabou se banalizando cada vez mais.

Trecho de "Travessuras da Menina Má - Mário Vargas Llosa"
Homenagem aos pós-modernos de sobrenome Neves. Um trazendo o exílio no nome, e outro exilado na terra da Rainha.

sábado, 19 de março de 2011

Gosto de olhar as pessoas quando jogam xadrez.
Meus olhos seguem estes peões
que pouco a pouco seguem seu caminho
até alcançar a última fileira.
Este peão avança com tal desembaraço
que te faz pensar que chegando a esta fileira
começarão suas alegrias e obterá suas recompensas.
Encontra muitos obstáculos no caminho.
Os poderosos lançam suas armas contra ele.
Os castelos o acometem com suas torres;
dentro de seus campos
velozes cavaleiros pretendem com astúcia
impedir seu avanço,
e por todos os lados, desde o campo inimigo
a ameaça avança contra ele.

Mais sai incólume de todos os perigos
e alcança triunfante a última fileira.

Com que ares de vitória a alcança
no momento exato;
com que alegria avança para sua própria morte.

Porque ao chegar a esta fileira, o peão morrerá,
todos seus anseios eram para isto.
Cai no Hades do xadrez,
e de sua tumba ressucita
a rainha que nos salvará.

Konstantino Kavafis (1863-1933)

terça-feira, 8 de março de 2011

quem governa o teu andar, teu desejo, coração?


de tudo o que não sei
brota uma questão
para quê saber dos céus
se é da lama a criação?

arte: michael reedy

sábado, 5 de março de 2011

O velho da rua

Tem seres que após nascidos
São bem dispostos, fortes...
E pela vida “enlouquecidos”.

Veja você: para tudo há vontade...
Desde cedo, no amanhecer,
Ou dentro da noite, quando já é tarde.

Entretanto, o mistério da humanidade
Não se restringe a tal falada bravura!
E para além da bem disposta irmandade,
Há que se considerar a fatia taciturna.

Veja eu, fineza, um caso exemplar!
Desafortunado neste mundo...
Magro, cansado, quase moribundo.
Mesmo em pleno amanhecer, após o descansar.

Pertencente a malograda fatia,
Assim o digo, agora sem nostalgia!
Aquele tal que nasceu cansado,
Com um livro na mão e para o ‘resto’ desanimado.

E quanto a tu, se quiseres me encontrar...
Investido de tal ousadia!
E assim me procurardes,
Sem saber onde meu espectro se escondia!

Dou-lhe, caro conhecido, um conselho:
Caso em minha rua vier chamar, na lábia.
Cuidado quanto às características do mancebo!
Se por ventura o meu nome não saiba!


Pois assim como certo grau de excitação ante uma bela mulher nua,
É mais safo se perguntares pelo 'velho da rua'.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Pedalando no páramo

       Já é praxe, eu pensava. Introduzo o parágrafo sendo alguém, finalizo-o sendo outro. Durante o momento em que sou linha e costuro no tecido escolhidas palavras para acrescer aos meus internos registros, milhares de sentimentos ecoam em mim de forma revoltante. Querem sair, agir, modificar tudo que um dia fui e o que pretendo ser. São sentimentos que continuo sendo incapaz de traduzir - quando isso acontecer, expulsá-los-ei de mim e desabafarei: ajam! Foi quando, irritado com os borrões no papel e na vida, rapidamente levantei. Indo em direção a janela, meu olhar foi desviado ao espelho e por um breve momento analisei-me. Minha mente estava inquieta. Debrucei-me no para-peito e meus olhos foram fechados pela leve e intensa brisa que entranhava não só em minha casa como em mim. Minha casca, definitivamente, discrepava de minha essência. Isso angustiava-me. “A resposta é você! É você, meu caro!” Quando abri os olhos, ainda pude avistar o homem que gritava pedalando sua bicicleta no final da rua. Ele ainda repetiu, em meio a risadas “É você!”. E, sem mostrar o rosto, se foi. Voltei-me ao espelho e percebi que eu poderia ser quem eu quisesse, desde que fosse.