terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Exposições

Enquanto as horas passavam, ele refletia.
Pensava, lembrava: sentia. Um turbilhão de emoções fatigava sua carne e envelhecia seu espírito. Seria este o novo fardo de sua existência?

A fumaça sobre o rosto, dentro dum quarto à meia luz. Entre e durante cada baforada o velho poeta refletia. Tantos anos haviam se passado desde o exílio. Seus traços não diziam exatamente que essa lembrança lhe trazia prazer, mas denunciavam uma interrogação. Os olhos úmidos denunciavam emoção. Sentado a frente de sua escrivaninha com alguns de seus romances favoritos, ele lembrara como se fosse ontem acerca de tudo o que tivera que fazer pra sobreviver durante muito tempo, num lugar distante, estranho, no meio de gente estranha. As marcas em seu rosto, o cansaço em seus olhos e as noites em claro de hoje encontra sua gênese num passado não muito remoto. Quantas experiências ele passou, o quanto ele foi sagaz ao longo desse tempo? A sobrevivência o fizera conhecer aspectos de si que ele sequer imaginaria possuir. E hoje, nesta sexta-feira, ao se sentir sozinho mais uma vez lhe ocorrera a lembrança de uma noite, no exílio. Como ele chegou lá? Bem, isso é papo prum dia inteiro e não pretendo tocar neste assunto agora.

E assim, subitamente, lhe vem uma lembrança. Serei razoável: isso que chamo de lembrança o poeta o sabia muito bem que tinha um significado muito maior. Era um café, era noite. Ao fundo Coltrane, provavelmente o disco ‘África Brass’, ou seria seu clássico ‘Love Supreme’? Bem, ele sempre confundiu os nomes dos discos do Coltrane, até conhecê-los profundamente. O lugar estava cheio e misturavam-se no ambiente o sax deste músico com as dezenas de conversas paralelas circunscritas ao espaço comum. Gargalhadas, confissões, sussurros, atração. Ali, naquela noite, entre um gole e outro, entre uma baforada e outra, entre um olhar e outro, este homem solitário depois de umas noites dormindo na rua, que conseguira aos poucos se estabelecer neste novo mundo que a ele se apresentava, fora tragado numa curva do destino. E exatamente nesta noite que ele teria onde dormir, um lugar pra ficar, foi que mais uma vez ele dormiu fora. Mas aqui fora por opção. Bem, nem tanto. Ah, aquele olhar. Que mulher era aquela, ele pensava. Compartilhou seu olhar, sua bebida, e sem rodeios, seus lábios. Sem dizer muitas palavras, se entenderam. E noite foi longa, a lua testemunhou. O agora sôfrego poeta teve inspiração pra escrever durante semanas, até encontrá-la novamente. Sempre que pensava nela vinha o sax do Coltrane naqueles solos intermináveis que acompanhavam perfeitamente a maneira intensa na qual se entregavam ao sexo.

De repente o esporro de uma trovoada o desperta destas lembranças e de volta o traz para seu quarto. Era uma sexta chuvosa e fria, e agora novamente no seu presente, percebe que lágrimas escorrem pelo seu rosto e a saudade que lhe aperta o peito o faz ter idéias que ele não imaginaria que poderia ter, como, por exemplo, largar tudo e voltar pro exílio. Bem, ele pensa novamente, e de maneira racional tenta de toda forma contrapor este impulso instintivo de estar perto daquela mulher, e argumenta para si o quão absurda esta idéia é, pelo risco que nela há.

Um comentário:

Felício Freire disse...

O poeta se perde entre devaneios, baforadas, belos solos de sax e lembranças luxuriosas. Suas memórias o levam até o ãmago, morada do ego, lar de mistérios, salão de emoções! A saber, o velho trilheiro almeja, ou melhor, deseja conhecer um pouco mais dos meandros desses profundos vestígios.