domingo, 29 de agosto de 2010

Redenção

O despertar de uma nova consciência é algo doloroso. Pelo menos para ele, ser desprovido de visão mais plena. Meticuloso, desconfiava constantemente dos que estavam a sua volta, no cerne, o medo de ser superado. Caminhava vagamente pelas veredas com medo de encontrar ser errante na estrada longa que acompanhava. Por onde vagueava, predominava um breu que dificultava um peregrinar sereno. Apenas uma luz semelhante a um lampião brilhava ao fundo. Esta concedia uma mínima noção da trilha turva pelo qual o peregrino seguia. Nas escassas vezes que tinha coragem de observar a paisagem ao lado, surpreendia-se com tanta beleza. Contudo, não se sentia capaz de trilhar por tal caminho, o pensamento de estar descoberto o amedrontava. Sabia que ao lado predominava uma lei universal pelo qual os andarilhos deveriam acatar: o descortinar de suas vestes. Passou-se algum tempo e o eremita caminhava só em relevo irregular. Algo em seu pensamento, porém, se transformou. A solidão tornava-o fraco. Sentia que não mais agüentaria carregar o fardo de seus sentimentos sórdidos. Parou, e fez um movimento raro em sua peregrinação, observou a luz que iluminava ao fundo. Imaginava que ela era diferente do caminho que o amedrontava, pois estava em direção que, pelo menos em sua concepção espacial, diferia da trilha que margeava. Decidiu se aproximar. O caminho tornou-se mais árido, começou a atravessar diversas intempéries. O frio, antes predominante, desvaneceu. Passou a predominar calor quase insuportável. Sentiu sede. Andava munido apenas de arma branca afiada, conhecida em alguns lugares por peixeira, terçado, ou simplesmente facão. A luz tornou-se mais forte, avistou no horizonte mandacarus. Pensou, eis minha única chance. Sabia que esta espécie acumulava água e que poderia saciar parte de sua sede com o líquido extraído. Realizou o trabalho, sem antes ter a pela cortada pelos espinhos característicos da vegetação. Sentiu forças para prosseguir. Adentrou em um terreno desértico, a luz intensa não o deixava observar o horizonte. Caminhava com dificuldades e sentia suas forças se esvaírem. Sabia que não havia mais retorno, ou caia e tornava-se parte daquele deserto, ou prosseguia. Resistiu. A um dado momento a luz intensa diminuiu e concentrou-se em um ponto a certa distância. Teve forças para olhar. Aquela luz começou a demonstrar colorações diversas, das mais belas que até então vira. Com as derradeiras energias, prosseguiu. Passou-se algum tempo e eis que o peregrino avistou seu objetivo. Uma rosa púrpura destacava sua plenitude dentre aquele relevo desértico. Dela emergia aquele brilho que avistava ao longe. Prostrou-se diante dela e chorou. Sentiu o peso dos anos que peregrinou a ermo evaporar por seu corpo. Ainda ajoelhado e com os olhos baixos despiu-se de grande parte de suas vestes, elas não mais eram necessárias. Ao levantar os olhos uma surpresa. Encontrava-se em meio ao caminho antes indesejado. Contudo, sentiu imensa alegria de estar ali e renovadas forças para prosseguir. Sabia que carregaria agora vestes moldadas por história de reconhecimento e transformação, o descortinar seria menos oneroso e sentia coragem para realizar tal empreendimento. Ao antes eremita aproximou-se uma bela andarilha, não sentiu medo, contou sua história e construiu com ela um primeiro laço. Sabia que era apenas o primeiro ato de uma grande jornada que não mais temia seguir.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Canção do exílio - adaptada à Ilha de Vera Cruz.

Minha terra tem injustiças
Onde cantam os marajás,
As aves rapinas que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais sujeira,
Nossas várzeas mais odores,
Nossos bosques estão sem vida,
Nossa vida dissabores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Nenhum prazer encontro eu cá
Minha terra tem injustiças
Onde cantam os marajás.

Minha terra tem milícias, favelas, corrupção
Que tais não encontro em nenhum lugar não;
Em cismar — sozinho, à noite —
Nenhum prazer encontro eu cá;
Minha terra tem injustiças
Onde cantam os marajás

Não Permita Deus que eu morra,
Nem que eu vá para outro plano;
Sem que desfrute os primores
Longe dos dissabores;
Sem avistar os pós-maluf's nas Ilhas Cayman,
Onde cantam os marajás que virão amanhã...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Do amanhecer

De minha infância guardo muitas boas lembranças. É só olhar pra trás que meu peito se infla de ternura, um ar nostálgico me invade o espírito e meus olhos de úmidos transbordam. Meus pais me deram muito amor, muito carinho. De afeto, tive a dose que uma criança precisa. Só não tive mais, pois meus pais trabalhavam boa parte do dia e não havia muito tempo para me paparicar. Eles são pessoas muito carinhosas e herdei um pouco desse carinho através dos vínculos que nos unem. Fui uma criança livre. Apesar de ficar sob os cuidados de minha avó paterna ao longo dos dias, que àquela altura era uma senhora de seus sessenta anos, e que, apesar da redundância não me furtarei deste comentário, era bem conservadora. Minha querida avó não gostava que eu atravessasse os limites de nosso quintal e fosse à rua ter com os meninos da vizinhança, mas mesmo assim me sentia livre, pois nosso quintal era mágico. Era grande e havia muitas árvores que davam flores de variadas cores de tal forma que durante o outono partes deste quintal ficavam cobertas por uma espécie de tapete amarelo, dada a tonalidade das flores e outras partes de um tapete vermelho. As flores eram cheirosas e macias e como eu vivia descalço, sempre sentia a maciez dessas folhas que cobriam o chão.
Fui disciplinado a dormir cedo, e por conseqüência, quando pequeno, acordava cedo sem que isso fosse um trauma, como uma naturalidade quase estranha para uma criança. A janela do meu quarto era grande e por entre sete e oito da manhã, ao sentir alguns raios de sol mais amarelados acariciarem minhas pálpebras, despertava feliz, pois sabia que era dia, e eu podia sair pelo quintal de minha casa. Aqueles raios inofensivos hoje pertencem a minha lembrança, pois hoje em dia é muito difícil acordar cedo, a não ser que eu tenha que fazer isso. E os odores matinais estão igualmente muito presentes em minhas memórias. O cheiro da relva que fora molhada pelo orvalho, ou antes deste, o cheiro de pão torrado na grelha, os pés sorrateiros se esquivando da vegetação úmida, já após o bom café da manhã... quantos pássaros haviam naquele quintal, muitos cantavam durante o amanhecer e parecia que cantavam para mim. Havia muitas árvores frutíferas. Pé de tamarindo, de cajá, de jaca, de abacate, de amora, alguns tipos de manga, jabuticaba, cana-de-açúcar, goiaba, graviola e provavelmente outros. Subir nessas árvores era muito agradável, sobretudo nos dias de calor. Elas eram como um abrigo do calor, pois conservavam um ar incrivelmente fresco abaixo de seus galhos e folhas. Estamos falando dos meus cinco, talvez seis anos. Um pouco mais tarde, já familiarizado com a vizinhança, os muros desse saudoso quintal já não se faziam tão altos assim.

Esse lugar situa-se no bairro carioca de Campo Grande. No século XIX neste lugar havia cafezais, e o Imperador tratou de esticar uma linha férrea até lá, de maneira a escoar a produção. Não por acaso meu pai encontrou, em nosso quintal, moedas do tempo do império. Ele colecionava moedas, tinha catálogos e sabia o que estava dizendo. Eram duas patacas com o diâmetro de uma goiaba, cor de bronze com alguns inscritos de difícil compreensão. Pode ser que outrora escravos tivessem trabalhado por ali. Pode ser que não. Pode ser que o brilho daquelas árvores tivesse o adubo de sangue. Pode ser. Alguém passou por ali, nisso eu creio, senão como aquelas moedas teriam ido parar em tão distante lugar?

Na medida em que crescia, pude perceber que os garotos de minha rua, que era meu incrível universo de criança, vinham de condição mais humilde. Com eles aprendi a andar em nosso universo com poucas vestimentas, uma bermuda comprida e um par de chinelos já estavam de muito bom tamanho. No Rio, pelas bandas de Campo Grande, faz sempre muito calor. Também me são inesquecíveis as memórias ligadas aos jogos de futebol. Lá futebol era coisa séria. O passe prevalecia sobre os demais fundamentos, mas o drible é pré-requisito para ser considerado no esporte. Acertar o outro não vale, é sujeira. Lá só podia jogar limpo e nem precisava de gente arbitrando. A bola rolava no meio da rua, que era de chão batido, à beira de um esgoto a céu aberto, conhecido por vala. Havia buracos, aos montes, e muitas pedras espalhadas pelo chão. Mas mesmo assim a bola rolava, todos jogavam descalços e não era comum ver gente se machucar.

Aos domingos o jogo era em outro lugar: saía de casa com meu pai, antes do galo cantar, escuro ainda, rumo ao Mendanha para o campo dos veteranos. Sim, o glorioso clube Veteranos do Mendanha. No meio da viagem pausa, carro estacionado e uma média com leite numa padaria de sempre. Em pé, de costas pro estabelecimento, manhã fria e copo quente na mão assistindo o sol nascer. Chegávamos ao campo bem cedinho e o pisar descalço no gramado era sentir a grama gelada, graças ao sereno da noite. Lá havia muito mato ainda, nos arredores do relvado, resquícios imperiais. Lá a modernidade é bem diferente dos grandes centros. Os amigos do meu pai chegando um a um, abraços fraternos, todos trabalhadores que suavam ao longo da semana e que no domingo acordavam mais cedo: domingo era dia de futebol. Nunca me destaquei com a pelota nos pés, no futebol aprendi a respeitar os companheiros muito mais que a dita cuja. E isso por si bastou, já fez valer a pena. Tinha por ai meus quinze anos. Nessa época, em períodos de férias escolares, o céu ficava repleto de pipas. E ali, quase tudo era feito de maneira artesanal. A pipa e seus acessórios e o fator decisivo pra sobreviver naquele céu em guerra: o cerol. Boa parte do carretel de linha era desenrolada de um poste a outro e assim se faziam muitas voltas. Cola de sapateiro derretida, vidro moído, bem moído separado em outro vasilhame. De preferência vidro de lâmpada fluorescente. Misturava-se bem o vidro com a cola e ai sim, tínhamos um cerol fino. Bom pra cortar as outras pipas, bom pra limpar o céu se a coisa estivesse complicada. Horas de trabalho pra pô-la no ar em condições de sobreviver.
Tenho muitas outras histórias a contar dessa fase de minha vida. E sobre Campo Grande, uma milhar de outras a contar. È engraçado. Poucos, além de quem mora no Rio, alguma vez já ouviu falar em Campo grande e quantas histórias esse lugar possui. O Didi, famoso folha seca, tinha um sítio por lá e... bem, é preciso ficar por aqui.
Hoje em dia, há mais de um ano tento contar uma história do novo lugar onde vivo e a coisa não é tão fluente assim. Possivelmente o fardo de estrangeiro emperra minha pena ao ousar contar histórias de um bairro que não é o meu. Não sou lá um cara moderno, tenho dificuldades onde ninguém tem. Tenho superstições e é aos poucos que vou entendendo que as fronteiras do mundo conhecido se estendem um pouco além das de Campo Grande.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cenas Urbanas I – O Despertador

- Alô, você vem pra cá agora?

- Porraaaa!!!! Eu posso dormir por acaso? Você me deixa dormir? Quem é você para invadir o meu espaço? Não percebe que moro aqui debaixo dessa marquise? Eu moro nessa merda, porra !!! E você, seoporra, que pensa que é gente só por que veste terno de microfibra e calça sapato italiano. Eu sou e estou nessa merda toda, mas eu sei o que você veste o que carro que você tem, eu conheço tudo o que me cerca, e vejo além das coisas. Ao contrário de você seoporra, que passa por aqui todos os dias e nunca me viu ou se viu, fez questão de esquecer. Sabe por quê? Por que faço mal a quem se atreve a me olhar. A minha sujeira, a barba de imperador sem trono, as unhas podres com os restos dos restos do que comi ontem, o mau cheiro que exalo e prenuncia minha morte. Mas eu não posso desviar de vocês. Estou sempre aqui nesse emaranhado de papelão me virando com as sobras de cobertores, a agüentar vocês. Você sabe o que é precisar dormir mais do que o necessário por que sua cama é o chão? Não sabe, né seoporra? Eu vou te chamar de seoporra, tá entendendo? É isso que você é! Eu já não durmo direito, e logo cedo além da luz do sol, chega aquele puto do gari, outro merda que nem você, ele chega assoviando alto fazendo estilhaços no asfalto com a vassoura e a pá numa disposição de quem está de férias, você sabe o que é isso? Nem um travesseiro me livra desse tormento. Depois descem em carreatas as senhoras decrépitas com seus carrinhos de compra. Sabe como é? É este o meu café da manhã. Eu vejo melão, laranja, maçã, pêra descendo a ladeira e me contento só com as cores. Isso me alimenta. Agora até que está bom. Este novo canto não é de todo ruim. Aqui não tem guarda pra apertar com o cassetete a ponta do meu nariz. Dormir na fachada de um banco é mais perigoso. Mas eu ia me esquecendo de você seoporra! É falta de educação deixar o outro desamparado na conversa. Mas não te devo maior confiança sobre meu dia-a-dia. Um dia após o outro é sempre assim. Minha vida é pública, mas ninguém a vê.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Armando Pinto e o Poeta

Viajava o poeta pelo mundo certa vez, quando ao caminhar à beira de uma praia qualquer, num lugar distante, encontrou os manuscritos do venturoso contra-mestre Armando Pinto. Diferente de como se podia esperar, em vez dum pergaminho enrolado dentro duma garrafa esverdeada pela ação do mar e do tempo, nosso viajante espantado ficou ao se deparar com uma caixa velha, no formato atual de uma caixa de cerveja (feita de madeira), para 24 unidades, preenchida com o mesmo número de garrafas. Cada uma contendo um pergaminho. Todas elas vedadas com rolhas. E foi assim que a história deste tal, um conhecido ferrabrás de outrora, chegou à contemporaneidade. De forma fragmentada, é bom ressaltar.
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O poeta se descabelou tentando montar o quebra-cabeça. Acostumado com o sedentarismo desenvolvido ao longo de décadas frente a sua escrivaninha sem vergonha, ele não imaginaria que sua busca por aventuras fosse lhe proporcionar tamanha dose de prazer. Enquanto ele assistia a dois nativos exercerem o ofício de carregadores de caixa (tarefa a qual se mostraram grandes especialistas após receberem um pagamento muquirana do poeta), uma ansiedade lhe percorria a região abdominal, simulando inclusive uma sensação familiar: um desejo de ir ao banheiro, fazer...bem, defecar. Ele tinha uma leve intuição de que havia descoberto coisas valiosas.
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O resumo da ópera foi o descrito a seguir: as 24 páginas reunidas formavam um diário de viagem. E, depois de muito, muitíssimo tempo de análise, não foi difícil perceber que havia algumas pistas entre tais rabiscos. Depois de misturar alguns elementos em uma bebida esquisita, que praticamente arriou o pensamento lírico do nosso anti-herói, eis que finalmente foi possível perceber o ponto nevrálgico do textículo que se anunciava. E, foi assim, devagar, devagarzinho, que o poeta foi descobrindo a figura (esta sim) heróica do grande contra-mestre, destemido dos mares, rei do convés, o lusitano Armando Pinto, que para os íntimos atendia por seu nome completo: Armando Pinto de Madeira.
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Era nas noites de sexta-feira, bebedeira no navio, que esse português sem bigode fazia o queixo de marujo calejado cair, na semanal competição de metragem fálica que muito alterava os ânimos a bordo! Ó, saudoso português! Que num dia de tempestade pensava que o mundo ia acabar e escreveu o que pode, e tudo ao mar arremessou!
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Este prólogo desejava contar,
Como possível foi, desvendar...
A partir de migalhas de pensamento
Que há muito, dentro de garrafas,
Atravessaram o mundo,
E, assim, cortaram o tempo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Preciso me encontrar*



Por vezes eu penso se não é o cavaleiro da triste figura é quem estava certo. Engenhoso fidalgo que era, aprendeu a conviver com a nostálgica vida que lhe fora proporcionada. Descobriu, ao longo dos anos, assim como Erasmo em seu Elogio, o doce sabor da loucura. Não precisou escutar Elis Regina para descobrir a previsibilidade humana. Ainda, cantava Elis, somos os mesmos. Tampouco chegou a ler Exupéry para saber que “nada mudou, todavia tudo está mudado”.

Será que Dom Quixote, ao saber que não seria compreendido, preferiu refugiar-se na loucura ao ter que discutir as idéias pré-fabricadas do seu tempo? Questiono-me se, decerto, o modo como ele agia, como lutava contra os moinhos, como, deliberadamente, se portava, mostra um modo diferente de encarar a vida. A loucura como bem supremo. Outrora, pergunto-me se de tanto vivenciar os disparates sociais não se tornou indiferente a eles? Ou se, por ventura, esteja cansado da falta de criatividade humana com os seus repetidos problemas sociais sem “solução” (miséria, ódio, avareza, inveja)?

Valores morais, julgamentos retrógrados vigentes ainda nos dias de hoje. O niilismo que nos põe dúvida na crença. Onde está o soma que Huxley nos promete? Será, ele, a religião? Marx estaria certo ao afirmar a religião como o ópio do povo ou não seria o povo o ópio da religião?

“Deixe-me ir. Preciso andar. Vou por aí a procurar. Sorrir pra não chorar (...) Preciso me encontrar.”


* Tranqui, o Dom quixote peruano.

Pintura: Dom Quixote por Salvador Dalí.

sábado, 21 de agosto de 2010

Da Escrita

O exílio foi longo mas estou devolta!Fico muito contente em descobrir que esse blog não parou e que os exilados continuam afiados como nunca! Impressionante como saem coisas boas daqui! Volto com um texto sobre um assunto que me agrada muito: o texto em si, ou a produção do mesmo.


O saudoso (e louco) Erasmus de Roterdã já dizia, em um de seus romances do qual não me lembro se quer o título, que: “Todo escritor, antes de ser um bom amante das palavras, é um grande mentiroso.” Palavras fantásticas para alguém que não passa de um mentiroso, não acham?

O fato é que, a arte de mentir (ou de escrever, se assim preferirem) não é uma grande calunia, ou terrível falcatrua como alguns moralistas conservadores devem pensar. Mentir é simplesmente construir uma verdade e essa, assim como a dona história prova muito bem, não precisa necessariamente ter realmente acontecido. Verdade e acontecimento são dois campos bem distintos. No entanto Erasmus não foi o primeiro a questionar o seu próprio ofício, Shakespeare nos fala em sua não tão célebre obra “A Tempestade”, que: “Tudo que está a sua vista minha cara filha, a ilha, o mar, os pássaros, as nuvens, o intrincado Sol, e o sereno céu; tudo isso agora lhe pertence e está tudo aqui anotado, em meu testamento, mas não considere este em demasia, afinal, são só palavras.” Próspero, Duque de Milão, falando a Miranda, sua filha. Tal idéia também aparece em sua célebre obra “Macbeth”, em um de seus trechos derradeiros (se a memória não me falha): “Essa é uma história idiota (ou tola) escrita para idiotas (ou tolos, o que lhe parecer mais adequado). Sábio e ousado era esse Sir. William, mas nem tão original pois, muitos anos antes, na remota Grécia Antiga, um grego careca e barrigudo já afirmara em plena praça de Atenas: “Como se pode fazer uma pergunta a um livro?! Só o autor e seu discurso são importantes, não as palavras amontoadas no papel!”(Sócrates, em algum dos diálogos Platônicos).

O que estou querendo dizer com tudo isso é que muitos autores ao longo da história da literatura já criticaram a arte de escrever (ou de mentir, se preferir), isso não é nenhuma novidade, no entanto muitos escritores ainda relutam em aceitá-la. Podemos citar até casos bem distantes e de estilos muito diferentes como Poe em “Os Sinos” ou Eco com “Não contem com o fim do livro” ou mesmo Durval Muniz com seu “História: A arte de inventar o passado”. Nadando contra a corrente podemos encontrar Borges que na verdade faz uma apologia a arte de escrever, mas esse argumento também não merece muito credito, pois se há escritor mentiroso nesse mundo, esse é Borges. Mestre da falcatrua, lorde da mentira, gênio sem igual!

Minto a mim mesmo dizendo que esse texto está pronto, e então, como em um passe de mágica, ele realmente está!

FIM.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Nem mais um vintém...

No dia 18 de junho nasci. Era meados de 1890, em pleno inverno. Entre ruídos, estampidos e tiros nasci. Talvez não fosse nascimento. Talvez tivesse sido um exílio do ventre materno.

França, Itália, Suécia. Ali, onde fui exilado, digo, nascido, não importava muito. Como falar em Alemanha em tempos de cólera? Não existiam, nessa hora, países. Línguas tampouco. O dialeto era simples e carregava nele um sentido forte: viver. Mesmo que esse viver não significasse muito naquele modo sombrio e rudimentar de vida.

Tive, por infortúnio, que me alistar nas forças armadas mesmo não sendo tão forte assim. E lá chegando vi o front. E nele as trincheiras. E elas, as trincheiras, destrincharam meu ser. Estive à beira do abismo. Perdia-me desesperadamente nas minhas alucinações. A esperança de fuga foi vã. A princípio, pensava no todo como goiaba e me deleitava nos prazeres da maçã. Refugiava-me na maçã. A serpente me era mais agradável. Assim acreditei.


Pensava em minha mãe, mas não a conhecia - bem. Bem conheci - diga-se de passagem - foi Geni. Enquanto estive à espera do término febril da guerra, da grande guerra, de quando em quando eu a visitava. Misteriosa, assim, ela me surgiu, misteriosa, assim, partiu. Antes de sua partida, de sua boca escutei um “adeus, filho.” Se filho de Geni, a prostituta, sou, assim me senti ingrato. Não pela sua profissão – isso não!


Em meio ao front me situei. Suspeitei, depois da partida de Geni, que eu não era senão mais um. Inquieto estive por alguns momentos. De lado a maçã ficou. De nada mais me adiantaria o saber se eu, contraditoriamente, sabia do todo e esquecia de mim. Na guerra, matei, roubei, furtei. A estética e sua discursiva aparência era, por dentro, podre, tal qual uma goiaba contaminada. Foi então que descobri o valor da vida, da minha vida européia: 500 euros e nem mais um vintém...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Não seja feita a vontade DELE.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR (ESSE SIM É DOUTOR!) JUIZ JASON DE LIMA E SILVA DA 2ª VARA KAFKIANA DE PRAGA.


Z!, brasileiro, solteiro, artista da fome, sem número do RG e sem CPF, residente e domiciliado na Rua de nome Rua – Planeta Terra -, vem propor a presente ação em face de Deus, situado (aliás, muito bem situado) no céu, pelos motivos abaixo:


Por ser, segundo a bíblia, filho de Deus, Z!, agora maior de 18 anos, ou seja, absolutamente capaz, pretende processar o suposto pai, uma vez que não houve prescrição (Artigo 197 do Código Civil), por abandono intelectual e material quando Z! ainda era uma indefesa criança em fase de crescimento.

Amparado pelo dispositivo legal da Magna Carta – Art. 229 – no que concerne aos seus direitos, Z! pretende ser ressarcido pelo o que lhe fora assegurado no artigo anteriormente citado:

“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”


Quando ainda não estava metamorfoseado em um adulto, o autor viveu em vários lugares e, ao mesmo tempo, em nenhum lugar. Morou embaixo de pontes, ao lado de viadutos, em meio a praças. Esquecido pelo criador do céu e da terra. Oportunidade, assim como a esperança, era uma palavra que nunca ouvira falar. Saudade? Também não a tinha. Não são somente os norte-americanos que não a entendem, Z! também não a entendia. Também não era para menos. Como o requerente podia senti-la se não havia alguém que se preocupasse com ele?

A sociedade era outro elemento que não fazia parte de sua vida. Vivia à margem dela ou, como diz o dito popular, a Deus dará. Não teve estudo, tampouco aprendeu a ler. Ficava fascinado pela imagem do pequeno príncipe, mas Exupéry era-lhe inalcançável. Havia uma barreira social imensa. Um detalhe que, ao contrário da música de Roberto Carlos, não era tão pequeno assim.

Não brincava, brigava. Não dormia, hibernava. Seu passatempo era esperar passar o tempo. Sub-mundo era um lugar de luxo para alguém que, como ele, não tinha um mundo. Talvez viver fosse de longe a droga mais forte que já provara. O efeito dela era contínuo, ininterrupto. Nem precisou chegar aos 100, 19 anos de solidão já bastavam para saber que nada sabia, nada compreendia do sentido de sua existência. Não lia Camus, mas talvez soubesse, desde cedo, que era um estrangeiro. Indiferente aos padrões sociais que regiam. Incompreendido como Franz Kafka.

Pela manhã não via jornal, não tomava seu leite, não comia sua torrada. Dividia tristes momentos com o seu despedaçado eu. Ele nem sabia que tinha um eu interior. Descobriu ouvindo duas senhoras discutindo sobre isso na parada de ônibus. Tinha uma casa muito engraçada: não tinha teto, não tinha nada (familiar, não?). Feita de papelão, não abafava o barulho dos vizinhos. Berros, gritos, chiados, miados, latidos. Uma vizinhança e tanto.

Um belo dia foi abordado por dois missionários evangélicos. Disseram-lhe palavras encantadoras; que existia um lugar em que ele se sentiria em casa, que preencheria seu vazio existencial com a sapiência de um tal Deus. Vá conosco, sem compromisso - afirmaram a dupla. E assim nosso protagonista foi. De um problema social, tornou-se, pós conversão cristã, aprendiz da bíblia. Aprendeu a ler, a escrever, a se portar de modo, moralmente falando, “normal”. Afirmava conhecer, de fato, Ele.

Ao estudar incessantemente os ensinamentos bíblicos, descobriu que era filho de Deus. Agora entendia o porquê de Sófocles, grande tragediógrafo grego, falar que quanto maior a ignorância, maior a felicidade. Pensou como uma pessoa tem a ousadia de gerar um ser e, depois de um processo complexo, deixá-lo sofrer, sentir fome, frio, sem – ao menos – uma justificativa plausível. Aliás, não existe uma justificativa que explique o abandono. Abandono intelectual, material e, além desses assegurados pelo ECA (Estatuto da Criança e do adolescente) bem como pela Constituição Federal, há o abandono sentimental. O afeto, o carinho, o cuidado etc. Não condiz, com efeito, com o discurso cristão. Onde está, nesse caso concreto, o amor ao próximo? E eu que achava que eram somente as leis é que não saiam do papel.

Angustiado, Z!, ciente de seus direitos, resolveu procurar os meios legais para resolver a situação. Acreditou que dessa maneira fosse poupado da demagogia social que lhe fora ensinada na vida religiosa e, por consequência, fosse encerrada a questão entre Pai e filho. Não é por dinheiro ou vingança, é uma questão de justiça. O autor tinha, na infância, um direito assegurado que não fora cumprido. Agora busca nas vias judiciais o ressarcimento do dano. Assim, o requerente procurou-me.

DESSE MODO,

eu, anjo da luz, na condição de advogado do autor Z!, peço, com todas as honras, que V. Exa. determine LIMINARMENTE:

A apreensão de todos livros sagrados que foram distribuídos e faça com que DEUS os reedite. Faça com que ele exclua, dessa maneira, os sete pecados capitais à medida em que eles não foram socialmente aceitáveis, excetuando os fanáticos que, talvez, cumpriram as ordens. Além do mais, o pedido inicial se faz necessário, ao passo que, como se sabe, nenhuma sanção restitui o que fora anteriormente perdido, mas apenas apazigua os ânimos mediante a justiça que será, assim espero, concretizada. Nenhuma fortuna material substitui os valores que foram, no caso de Z!, deixados de lado. O vazio que o corrói até hoje não pode ser restituído por “x” salários mínimos. É uma questão unicamente pessoal, intrínseca de cada ser. Continuando a proposta, caso o réu não considere de bom grado o pedido inicial de reeditar as escrituras, é dada a idéia que ele faça, de próprio punho, um documento alegando que Ele não existe. Parece, de inopino, contraditório, mas veja que se para fins legais Ele não existe, nenhum crime pode ser imputado a Ele. Com isso, ficaria provada a inocência do requerido. *



Assim, requer que Vossa Excelência determine a citação do réu para comparecer à audiência de conciliação a ser designada e, caso não haja acordo, possa oferecer sua contestação, sob pena de serem considerados verdadeiros os fatos alegados.


Nesses termos, pede-se, então, o deferimento.



Florianópolis, 9 de novembro do ano de 2009




Anjo da luz
Nº da Ordem dos Advogados da República Tcheca: 2012












* A parte do pedido foi feita com a ajuda do mestre Jason de Lima e Silva.

Luccas Neves Stangler.