domingo, 24 de fevereiro de 2013

Alguma inquietude pela manhã


Uma tarde de segunda-feira
deve sempre se configurar na neblina
Hoje chove e no centro da cidade nada se enxerga a não ser a ausência de tempo de todos
uma mulher atravessa a rua sem pressa seu olhar me atravessa
aquela mulher com olhos fundos, fundos de vida, um vácuo na neblina
e eu assustada com aquele personagem
corte no asfalto
pausa no tempo
eu molhada, talvez atordoada
a mulher atravessa a rua como um campo de batalha calmamente envolta a sua capa, suas olheiras e um pouco de rancor, expressão daqueles que exalam em suas peles uma maturidade saturada, talvez rachaduras ou dobras do devir
não conheci aquela mulher mais do que três segundos cristalizados em minhas retinas
seus fugidios movimentos tão citadinos, eu tão estrangeira...
Não era fotografia, era gráfico, tinha sensibilidade, mas não se eternizou,
a não ser em minha memória meio cinema, arte cidade... Ou Godard em dias cinza.

Este poema foi escrito por "Nas Moradas do Desassossego".

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Liberdade, igualdade e fraternidade?

Se nascer é estar condenado à liberdade, o que significaria o desfalecimento? Se o que nos prende nesse universo é o pensar em um sentido mundano, por que ainda há vida? Se categorias filosóficas fazem o ser algo mais suportável, o que é o amor? Os poetas querem impor a metafísica naquilo que somente pode ser comprovado pelos sentidos, os mesmos (sentidos) que nos enganam até que consigamos adormecer. Isso, é claro, se formos demasiadamente otimistas para acreditar que há um despertar. É preciso, desso modo, partir do pressuposto que ainda exista, em partes, alguma liberdade, mesmo que não seja remunerada pelo sistema que sempre se critica. Há cabimento?, questiona-se. Por que deveria haver?, retruca-se.  

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Música para ouvir

A faca que abriu a ferida
Chegou foi via celular
No momento em que 
A guria dirigia...

Depois de desligar 
ligou o rádio com pressa
- compressa -
para o sangramento estancar:

"Canta, Arnaldo Antunes
Canta bem forte que preciso muito de ti
Canta que teu canto acaricia e acalenta!"

"Música para ouvir"
Música que entra pelos poros
Atravessa o corpo e a alma e vai além...

- Bianca Velloso - 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Pai

De todas as feridas que traz na alma, existe uma - apenas uma - que de vez em quando ainda sangra. As outras - talvez nem sejam tantas - já cicatrizaram tão bem que lhe ajudam a compor o caráter e equilibrar o temperamento. Usando as palavras, como se linha e agulha fossem, ela tenta suturar a ferida que neste momento encontra-se aberta. Esta ferida tem um nome curto, apenas três letras, mas é tão profunda que pode lhe causar hemorragia... A ferida chama-se Pai...

Tudo bem que ele refizesse sua vida e tivesse outros filhos... Tudo bem que ele não pudesse - ou não quisesse - colaborar financeiramente...  Tudo bem que ele lhe tirasse a casa... O mundo material não era o mais importante, além do mais a falta deste tipo de apoio fez com que ela aprendesse a caminhar com as próprias pernas... Tudo bem que não comungassem dos mesmos ideais... Tudo bem que ele não fosse visitá-la... Ela só queria estar perto e contentava-se com migalhas de afeto...

Há dezessete anos, ela era uma menina metida a revolucionária e poeta. Foi trabalhar com o pai, num centro de adaptação de lentes de contato. A ideia era que trabalhasse apenas durante as férias da faculdade, pois considerava a atividade muito técnica e muito comercial. Ela queria trabalhar com gente, acreditava que poderia mudar o mundo e que o caminho da mudança era a educação, por isso cursava pedagogia. Acabou percebendo que trabalhar com a visão era também poder olhar de perto para as pessoas, e que para mudar o mundo poderia começar pela transformação do olhar...

Para além de toda essa percepção, estar ali naquele meio era estar perto do pai, o homem que ela ainda acreditava merecer o título de heroi.

Quando resolveu aprofundar-se nos estudos e mergulhar no universo das lentes, ele disse que não poderia acompanhá-la... Quem ficou ao seu lado foi a mãe... Mesmo assim ela não desistia de estar perto dele...

Formada em Optometria, enfrentando uma briga ferrenha com os oftalmologistas, lutando para trabalhar, trabalhando com afinco, conquistando espaços entre os integrantes do ramo, ela já estava acostumada a manter com ele uma relação de parente distante... Um dia ele resolveu sondá-la, chegou até a propor parceria... A filha, já não mais tão menina, animou-se, viu novamente a oportunidade de estar perto do pai... Finalmente ele estava reconhecendo seu trabalho, seu valor...

Para seu grande espanto, de repente, descobriu que aquela proposta já não existia, que aquela parceria já estava acontecendo e não era sua... O pai aliou-se a uma oftalmologista... Porta fechada, ferida aberta... Sangrando... O que se pode esperar de um pai que nunca foi pai? A menina-mulher já não quer mais esperar de quem não pode dar afeto... E segue o rumo carregando os mesmos ideiais poéticos e revolucionários de outrora... Talvez ela não possa mudar o pai, mas quem sabe se mudar o mundo - através do olhar e da poesia - a alma não cicatriza um dia?

- Bianca Velloso -

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Um até breve

Há tempos não revia aquelas pessoas
de alguma forma, todos estiveram presente
nesta minha vida.
Alguns ainda estão.

Vejo-os todos barbudos ou cabeludos
ou os dois.
O tempo passou...
Há fumaça pelos cantos da mesas
há garrafas vazias e muitos copos
pela metade.

No entanto, olho para os lados
não vejo alegria naqueles rostos
talentosos.

Há conversa miúda, há até alguns risos
mais animados.
Entretanto, sinto o óbvio
numa despedida

Meu camarada,
percebeu o que poucos perceberam,
que pra este mundo, só uma transformação!
Pra não usar outro termo que afete,
sentimentos pequeno-burgueses.

É camarada, você se desprendeu
neste tempo, de muitas amarras.

E a partir deste momento, passou a existir
uma identidade maior em nossa já muito estimada amizade.
O que nos torna cúmplices – desse desejo por transformar!

Te vejo quieto, camarada...
como quem prevê,
que em uma hora talvez,
seus amigos do peito já terão ido embora.

Eu próprio já o pressinto.
Minha hora se aproxima e eu,
sinceramente, não sei... quando
o verei novamente.

Queria te dizer uma coisa
que não disse na hora, meu amigo.

Minha cara séria não fez perceber,
mas pude notar seus olhos vermelhos...
e quando te abracei só pensava o seguinte:
“Tu é um grande camarada! Vai fazer muita falta!”

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Um conto sobre lendas

Madrugada corria solta, embora silenciosa, enquanto andávamos por uma rua paralela à praia. Os dois amigos, bêbados, já assaltando suas próprias geladeiras na falta de bares abertos naquele bairro miúdo, assim, de um cosmopolitismo provincial – que se infla nos verões da vida -, atrás de alguma cerveja gelada pra amaciar a conversa. E um assunto secundário que acabou se tornando um clássico da verborragia noturna, gloriosamente relembrado na tarde de sol seguinte quando a filosofia fraterna se aprofundava, se estreitava, de frente para o mar. Pois. G. e H. são amigos velhos. Nem tanto. 10 anos? Dá pra cravar. Estão flertando com os 30. Quer dizer, um já está entrando neste cômodo, o outro, bem... este gajo ainda olha assustado, pra este cômodo nada cômodo da casa dos 30, de certa forma. E, voltando à rua silenciosa, daquela noite, que de tão noite já se diz que era madrugada, uma madrugada paralela à praia, se é que posso assim dizer. Bem, então. G. do alto de todo um sistema de argumentos desenvolvidos na medida em que seus passos evoluem, assimétricos, pela mesma rua, diz, essa coisa de pós-modernidade é uma loucura. Hoje se vive tudo no agora..., vivemos, meu caro, sob a égide do presentismo, as pessoas querem o prazer imediato e ponto, não importa lá muito o que vem depois. Houve um tempo que se desejava viver e ter uma continuidade após a vida, deixar um nome, deixar sua marca no mundo para que quando a pessoa morresse, alguém, enfim, as pessoas lembrassem dela. Como a construção de um ícone, certos homens desejavam viver como lenda, na posteridade. Dito isso, toma mais um gole quando H., que vinha concordando com a cabeça, dispara: é cara... as pessoas hoje não se preocupam muito com isso. Mal termina e G. continuando seu pensamento, diz, sério, cara... perguntei pra minha mãe o que ela pensa sobre isso, se quando ela morresse ela pensa se alguém vai lembrar dela, das coisas que ela fez... H. interroga, rapidamente, o que ela disse? Ela não disse nada, os dois riem. De repente silêncio sobre o silêncio da rua e H. dispara, cara... eu acho que meio que já sou uma lenda. E, num rompante sereno, porém mais rápido que aqueles disparos em duelo de faroeste norteamericano, G. olha pro alto dizendo, lenda? H. se vc morresse amanhã ninguém ia lembrar de vc, e antes que H. pudesse pensar, emendou, nem seus pais! H. esboçou a tela em seus pensamentos, o dia seguinte, falecido, e em sua casa a mesma rotina, inabalada, como se não tivesse ocorrido nada, seu pai assistindo futebol, sua mãe lendo alguma coisa ou escrevendo, enfim, como se ele nunca tivesse existido. Alguns segundos em silêncio sobre silêncio que já esteve sobre silêncio e H. desata numa risada fora de controle que logo atravessa G., que não sabendo bem que era especialista em demolir lendas, se dava conta da tragédia dita, e já soltava lá suas risadas também. Não sei exatamente quantos segundos duraram aquela risadas, mas, na tarde seguinte gerou riso de ambos novamente à lembrança do ocorrido.

E H. sabe, embora não admita, que andou rindo sozinho pela casa, depois que voltou da rua. Clássico da verborragia noturna? Maneira de dizer. Não deve durar mais que dois dias, possivelmente, este lembrança. Provavelmente H. deve julgar o contrário e G. ao ler estas linhas, já o deve ter esquecido. Ou não.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Solilóquio pré-carnavalesco

(lira dos trinta anos – e meio)

Lá se vão os cabelos,
vão perdendo o tom
desafinando, então?
(numa procissão silenciosa, sem marcha ré)

O corpo já demora
a responder,
tenho pressa,
angústia;

As festas de rua
estão chegando.
Os barulhos, a alegria apenas... embora efêmera.

O passado volta,
devastador...
ainda não, passado (uma vírgula de "penetra")
não foi dessa vez.

06-02-13

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Manifesto saudosista

Dedicado à P.


                   Equivocam-se aqueles que em nome da língua portuguesa defendem a originalidade sentimental e estética da palavra saudade. Lembremos da Torre de Babel e dos processos linguísticos envolvidos em tal façanha: tinha-se o objetivo de construir uma torre que chegasse até o céu. Os arquitetos e construtores de tal monumento, pelo o que se conhece, falavam a mesma língua. Tudo transcorria bem até que o bom deus roga-lhes uma espécie de praga, sendo que, segundo o livro sagrado, as pessoas envolvidas nessa empreitada arquitetônica são castigadas a se comunicarem através de línguas diversas; o que parece, em teoria, impossível. Essa diversidade linguística, ainda na escrita divina, lhes trouxe caos e devido à incomunicabilidade a Torre, dessa maneira, não pôde ser concluída. Essa é a versão que nos foi apresentada, mas eis que milagrosamente apareceu uma outra que é apócrifa, diz-se que foi escrita pelo professor Woland, onde os fatos podem ser mais apurados pela solidez do conteúdo e a similaridade com os nossos dias.  
Segundo o professor, uma testemunha ocular do evento, a não concretização da empreitada daqueles que originalmente falavam a mesma língua, não se deveu aos problemas e complexidades idiomáticas. Os movimentos migratórios que quase sempre existiram e ainda continuam a existir na Europa não são impedidos tão somente pelo fator língua - apesar de Vilém Flusser construir toda a sua filosofia sob o pretexto que a língua criaria a realidade -, tanto é que hoje em dia não é difícil encontrar húngaros, poloneses e brasileiros que mal sabem falar os números em inglês, mas que, entretanto, moram e até trabalham na Terra da Rainha, apesar dos pesares. Com isso, o respeitável Woland chama a atenção para um fato humano, demasiadamente humano: A intenção de se construir a Torre de Babel foi, por si só, um atentado às entidades divinas, uma vez que o comportamento desses humanos foi como se quisessem se tornar deuses ou semi-deuses. Imaginando ser possível fazer o uso do anacronismo, seria dito que a Torre foi uma obra faraônica. Assim, a não concretização da Torre não foi devido à incomunicabilidade entre as pessoas relacionadas à essa empreitada esquizofrênica, mas sim ao jogo de interesses.
No início da construção, não havia separatismo ou sequer grupos que trabalhavam de modo isolado. A coletividade estava envolvida em prol de um objetivo: chegar até o céu. Quando este ocorrido chegou ao setor de notícias do divino – não podemos esquecer que os órgãos, inclusive aqueles pertencentes à burocracia divina, têm se setorizado cada vez mais -, dizem as más línguas que o todo poderoso enfureceu-se de tal maneira que acreditou ser preciso lhes rogar, como já descrito, uma praga, mesmo não sendo primavera. Para tanto, fez com que a até então única língua se confundisse, misturasse e que no lugar teriam diversas línguas. Que desnecessário!, pensou o professor Woland na ocasião. Mesmo com toda a diversidade linguística, a construção continuou e isso é o que não está escrito, afinal não se quer contrariar a vontade dos escritores bíblicos. A inocência nos forçaria a questionar como isso foi possível. Woland, antecipando a nossa curiosidade, respondeu que o projeto estava desenhado e as funções já estavam previamente designadas, antes mesmo da intervenção d’Ele. O grande problema, volta-se a dizer, foi o caráter humano, demasiadamente humano: pelos jogos de interesse, começaram a se firmar pequenos grupos. Houve separação. O projeto coletivo começou a se tornar mais individual. Fingiu-se não entender aquilo que já estava designado - é comum os humanos se esconderem por detrás de desculpas que possam justificar seus fracassos.
A partir de então, a Torre ficou apenas na lembrança, um sonho que não conseguiu ser concretizado. Assim, o leitor que conseguiu chegar até essa parte do texto é convidado a ser perguntar: o que a Torre de Babel teria a ver com a palavra saudade? Diferentemente de uma fábula, onde os olhares são voltados para a sugestão do autor, seja um autor defunto ou um defunto autor, aqui não será sugerido muita coisa. Também não haverá uma moral da história. Mas não te desanimes. Aqui, será exposto uma manifestação de repúdio aos supostos detentores das palavras, aqueles que acreditam poder cristalizar a vivacidade do universo literário, algo tipicamente acadêmico. Leia-se: imoral. Não se pode aprisionar as letras que transitam e que embelezam a transitoriedade do Ser. Então é preciso pensar em voz alta: Por que defender a exclusividade do dizer ‘’saudade’’? Não sentiria saudade um inglês, aquele que não detém essa palavra no seu vocabulário? As vaidades...