sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Círculo de Fadas

Clara estava se sentindo tão implosiva e destruída que poderia se chamar Hiroshima. Era implosiva, porque se fosse ex, tudo à sua volta já teria ido se juntar ao pó das estrelas.

Pegou um pouco de pó de fadas e fez um círculo ao redor de si. Dos cogumelos de chapéu vermelho que via em seus sonhos, o único em que morava um duende foi justamente o que ela tirou do solo. E o duende pediu que ela lhe desse algo em troca. Ela era uma bruxa, sabia mexer com as palavras pra arquitetar feitiços e fetiches. Ela teceu pra ele um encantamento em forma de versos, e remexeu sua saia à procura de ervas mágicas e jogou algumas delas ao vento. Do chapéu ele tirou algumas folhas, e nelas escreveu suas vontades. Eles juntaram tudo isso em seus punhos unidos, e atearam fogo em gravetos numa fogueira onde jogaram ervas e palavras escritas.

Estava feito o encanto, e o duende sem casa teve que se mudar.

A bruxa desfez o círculo, e tudo sumiu. Ela era novamente Hiroshima, e se fez forte pra poder voltar.

Das pedras do lago de perto de casa ela fez um colar, com contas e conchas e cheiros, e ofereceu-o à Deusa do Lago, pedindo que tivesse o poder pra transitar entre os mundos com seus círculos de fada, e que pudesse sempre voltar, com a mente sã de feiticeira. Mente sã de feiticeira não é mente sã de pessoa. É a mente de uma mulher mágica.

A Dama do Lago entendia isso, e veio até a bruxa com lágrimas nos olhos, dizendo que a missão de Clara não era límpida como seu nome, e Clara chorou, chorou muito. Mas a Dama abençoou, e, Deusa que era, permitiu que a jovem bruxa acessasse os mundos quando quisesse.

Pela primeira vez, Clara implodiu de fato.

De novo girou no ar jogando das mãos brancas o brilhante pó de fadas, e o círculo se formou no chão, transportando-a para um novo mundo. O duende achara outro cogumelo para morar, e deu-lhe um pedaço pra que ela ficasse do tamanho dele. Como uma Alice mais velha, a bruxa ficou pequenina, e de repente se sentiu uma menina, conduzida pelo duende até aquele pequeno universo que ela não conhecia.

Dos encantamentos que proferiram, poucos ela guardou a memória. O tempo e as palavras ditas se perdiam fácil naquele paralelo, e ela só lembrava de imagens e flashes que ela trazia pra si em sonhos encantados. Clara implodiu pela segunda vez, e o duende sorriu satisfeito, e dos suspiros deles dois o ar se encheu.

A bruxa desfez o círculo e sumiu.

Na terceira vez que voltou ao campo de cogumelos, teve uma visão. Viu um duende que cantava na beira de um riacho pra uma linda sereia. Ele trazia consigo uma flauta que tocava com maestria, e eles juntos faziam a música mais bela que ela jamais escutara. Ela própria se fazia em canções, e se traduzia em melodias profundas e melancólicas. E de repente ela se sentiu uma intrusa num mundo de magia que não era dela, e se sentiu tão humana que resolveu voltar.

Pela quarta vez ela formou sua roda mágica. Sem se importar com melodias, ela se lembrou das lágrimas da Deusa e segurou bem sua saia comprida, pra que ela não se arrastasse. Andou por entre as folhas e o gramado pipocado de vermelho e se fez pequena novamente.

No fim de tudo, a bruxa virou um cogumelo atômico, e o duende foi morar nela.

Quando o sol se pôs naquele mundo, ela já era tão pertencente àquilo tudo que não se via sem seu portal. Agora ela pedia proteção e paz. E sabia que não teria mais. Nunca deveria ter brincado com pó de fadas. Mas estava se tornando uma delas.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Transição

Afundei meus dessabores no fundo de um copo de cachaça. Sentada no bar, eu ainda podia sentir no cabelo o perfume barato daquele que fora meu acompanhante durante a noite. Provavelmente eu nunca mais veria seu rosto barbado, mas aquilo não me inquietava, queria mesmo era ficar sozinha com meu copo, lembrando e esquecendo as memórias que um dia foram minhas. Já não era mais a mesma, mas também não sabia quem seria. Por um momento senti-me invadida por um imenso nada; um vazio tão grande que corroía qualquer espécie de sentimento que um dia pudesse ter existido em mim. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, imóvel. Presa entre a inércia de meu passado e futuro, meu presente era o momento em que me esvaziava de mim mesma.

Voltei a mim quando senti uma fisgada no ferimento em meu punho; ainda sangrava, mas o corte não poderia ter sido tão fundo assim. Foi a dor, como em tantas outras vezes, que me trouxe de volta a realidade. Mas eu tinha resolvido abandonar a dor e ignorei a ardência que sentia no punho. E então me lembrei do tango, minha nova vida merecia um tango.

Atravessei a cidade até chegar numa das poucas casas onde era tocado um bom tango e no caminho arquitetei minha mudança para Buenos Aires. Era na cidade argentina onde eu deveria morar a partir dali, era lá que minha vida começaria novamente. Ah! Se o tango falasse. Diria que me chamou naquela noite de outubro.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Queria saber...(uma história nostálgica de um) sobre-tudo.




Saber diferenciar entre o azedo e o amargo tem sido uma experiência ácida - tem transbordado a noção do real. Existiria, dr., algum exilados anônimos?


- Acabou a consulta sem ser respondido; colocou novamente seu sobre-tudo, queria saber sobre-tudo, mas resignou-se, levantou-se da cadeira do consultório psiquiátrico, atravessou a rua e caiu. Caiu em mais uma armadilha da vida. Fazia frio, aliás.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

As rochas

Não sei quais foram os motivos do acaso, ou do destino - que para mim são a mesma coisa - me fizeram querer sentar naquelas rochas mas, foi exatamente o que fiz. Sentei sobre as rochas que repousam à séculos no famoso Rio da Prata. Ali a solidão era absoluta e veio como uma boa e velha amiga a qual eu não via há muito tempo. Estranho, pois a solidão normalmente me parece algo pavoroso e que deve ser evitado. Mas não ali, não sobre as rochas. O único som que existia era o barulho das águas golpeando as rochas. Golpeando e recuando, golpeando e recuando, golpeando e recuando, tudo muito lentamente. Toda essa extraordinária situação me fez pensar; e pensei...

Pensei em meus vícios, erros e desilusões; pensei as cidades; pensei as viagens e no real motivo por trás delas - se é que existe algum -; pensei em todos os ibéricos que morreram ao longo dos anos naquele rio, naquela fronteira, naquelas rochas, e em todos aqueles que prosperaram graças àquelas barrentas águas; pensei em como o espanhol é uma bela língua, que sinto grande prazer em escutar, mas não o dos argentinos que vomitam as palavras em uma velocidade absurda. Prefiro a cadência dos uruguaios mas, belo mesmo deve ser o dos espanhóis como nos filmes, ou melhor, películas, de Almodóvar. Pensei nos amores antigos, nas novas paixões, e nos amores platônicos jamais realizados - os mais belos entre os anteriores -; pensei na solidão, na velhice e na eminente morte, e fiquei com medo. Parei de pensar. Resolvi que deveria fumar um cigarro. Sim! Ali me parecia um ótimo lugar para fumar um cigarro. Ascendi, traguei, e como preso por uma terrível maldição, voltei a pensar. Lembrei que certa vez um amigo me falou que o tempo de fumar um cigarro é de aproximadamente 7 minutos. Ele deveria estar errado pois aquele cigarro me pareceu eterno. Digo eterno pois essas coisas não podem ser calculadas em minutos, segundos ou horas. Ali o tempo dos humanos não importava e os relógios não passavam de meros brinquedos. Ali importava o tempo das outras coisas: do vento, das águas, do Sol, das rochas. As rochas me fizeram refém de seu tempo.

Quando acabei de fumar o cigarro eterno, e por mais que isso pareça contraditório, ele acabou; pensei em todos os seres - não só os humanos - que ao longo do "tempo das coisas" se sentaram sobre aquelas rochas e como elas não deveriam dar a mínima importância para isso. Para elas fui só mais transeunte, um passageiro, um viajante, apenas mais um que sentou e foi embora, assim como as águas que a golpeiam. Enquanto elas ficam ali, estáticas, imóveis, apenas sendo rochas. Bem sabemos que, diferente dos elefantes, as rochas não tem boa memória. Decidi fazer com que elas se lembrassem da minha passagem.

Deixei a bituca do cigarro eterno ali, sobre elas, e parti. Alguns dirão que depredei o meio ambiente, que agredi a natureza, ou coisas desse escalão. Em minha defesa argumento que fiz uma intervenção. Intervi nas rochas assim como elas interviram em mim. Troca justa. E que a bituca do cigarro eterno continue ali provando minha passagem, até que a chuva a apodreça; ou que o vento do Prata a carregue para lugares que minha mente nunca se quer ousou sonhar; ou então, quem sabe, até que as rochas virem pequenos grãos de areia na orla da praia, esses que nada mais são do que sombras das antigas rochas.

30/09/2011 - Colônia do Sacramento, Uruguai.

Pensado enquanto estava sentado sobre sábias rochas que não ligavam a mínima para minha existência.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Hoje é aniversário de morte de Edgar Allan Poe, um dos meus escritores favoritos. Estava relendo o poema mais famoso dele "The Raven" (o corvo). Minutos depois fui ao banheiro (na faed) e isso aconteceu... não pude deixar de notar a coencidência.

O resto é história, ou melhor, a tentativa de um poema feito em poucos minutos.

Sobretudo em homenagem a Poe.


The Birdie

Sob a pia havia um pássaro,
camuflado - na verdade - da cor do granito,
imperceptível,
desatento, adentrei e urinei,
pertubando o pássaro,
o pássaro sob a pia,

Começou a voar, desesperado,
batendo, batendo e batendo,
numa barreira de cristal,
que aos homens cabe chamar de espelho,
mas aos animais não cabe a nada nomear,

batendo e batendo, o pássaro assustou-me,
corri do recinto, cheio de vexame,
não sei qual foi o destino do pássaro sob a pia,
que batia e batia contra o espelho errante,

imagino que ficou por lá,
por mais algum instante,
BATENDO, BATENDO E BATENDO,
apenas isso e nada mais!

Algo muito marcante apesar de fugaz.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A fundação,

procura fundos de investimento para criar algo novo,
procura amparos simbólicos de cunho intelectual,
procura mostrar às pessoas o que devem assistir e escutar,
procura mostrar o seu valor para a sociedade,
procura ser admirada,
procura fundar os fundamentos básicos da nova cultura,
da cultura de verdade,
mas, precisaria a cultura ser fundada?

Eis o dilema da fundação.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A bíblia de Kronos

Mãos que fraquejavam e que faziam falhar. A tormenta era, com efeito, uma tempestade que impedia compensar o inesperado. In-ten-sa-men-te descompensado. No comforto, uma zona já conhecida, abrira-se uma grande cratera e o auto-controle fora perdido. Os verbos não mais se conjugavam e não mais se sabia - mesmo porque pouco ou nada adiantaria - diferenciar se era ¨feito¨ ou ¨fazido¨. O deus Kronos, do contrário de outros tantos deuses, não esclarecera seus mandamentos através de provérbios ou adágios: ó, desmedida maturidade!


- Se não há história sem a escrita, não há experiência sem sofrimento.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

morte onírica

Sonhei que estava com alguma dessas doenças no organismo,
careca, abatido, debilitado,
olhando as alvas paredes e teto do que deveria ser um hospital,
Amigos e parentes vinham me visitar com mensagens de esperança,
na verdade eram de despedida,
Não apenas como sendo o destino certo dos mortais a morte de parecia algo eminente,
Acordei sem saber o veredicto do sonho.

Desperto; percebi que estava tranqüilo e sereno com tudo isso. Que havia sido um sonho e não um pesadelo! Que tudo aquilo me pareceu normal.

Isso sim me assustou.

Sonhei esse sonho durante um vôo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Loucomelo

Abre-se o portão, fecha-se o portão
entre esses tempos (tempos relativos)
nada faz sentido
abriram-se as portas da percepção

o que são relacionamentos?
o que eu sou?
o que tu és?
angustiante conhecimento

lua cheia, faz sombra
isso vai passar?
quero sair daqui!

acabou, volto ao mundo da realidade
ou seria o mundo da ilusão?
ah, Aurora, veio contigo a doce bitolação.

Camilíssima.