sábado, 29 de janeiro de 2011

Sentimento unificador

Eis que no dia em que se encontrou com a rosa, ela sussurrou ao ouvido do eremita: Fé!

Não compreendeu. Há tempos vinha a refletir sobre o acontecido, pois procurava observar sinais e assim examiná-los, entendê-los. Por muito raciocinou, todavia, pereceu.

Um dia sentiu falta da rosa, da sua beleza e da delicadeza de sua voz. Contudo, à distância não o fez sentir a ausência apenas por uma atribuição da razão, sentiu algo diferente que partiu do pulsar de seu cordis. O tom gerou movimento em seu peito de dor e felicidade. A dor do prezado ser não estar ali, a felicidade resumida na sua simples existência, corroborada pela alegria dela a ter cativado. O sentimento unificador era uma estranha lembrança que vinha do peito, da mente unida ao coração como uma espécie de arte do cultivar. A certa altura, lembrou-se que conheceu um velho marinheiro, contador de histórias, que dissera que muitos anos atrás, durante as Grandes Navegações Portuguesas, seres desprovidos de medo lançaram-se ao mar em busca de grandeza e deixaram o seu futuro ligados a coragem de experimentar o novo. Sentimento mutuo de dor e admiração emergiu entre os que partiram e os que ficaram, e os conectou pelo amor a cada um e a causa maior. Disse que um grande mestre da literatura daquele país resumiu tal movimento com uma palavra denominada “saudade”. Interessou-o um pensamento em que relacionou a coragem ao coração. A lembrança o fez ir às lágrimas. Agradeceu a oportunidade de tal encontro, que até aquele momento ainda não havia feito sentido, mas que finalmente vinha a compreender. Não escondia a emoção por enxergar as capacidades da natureza. Reconheceu que o sentia era saudade da rosa e assim lembrou-se da fé.

A chave da compreensão partia da inexistência da lógica no entendimento da fé. Pois ela parte do coração pela capacidade de abstração que vai além das habilidades mentais. O sentimento envolve a mente e vai além, é atributo do espírito.

Compreendeu assim as palavras da rosa, pois enxergou além do visível, do aparente possível. Sentir a conexão o deu a convicção que por seu coração sincero, encontraria novamente a rosa, mesmo em aparente caminho pedregoso em que estava.

Feliz por sentir saudade, experimentou o metafísico e gostou.

Caminha ainda distante, porém, convicto que a leveza está no poder de acreditar, no poder de amar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O Muro e a Planta

Surgiu do meio do muro,
nascendo intrusa entre os tijolos.
Com uma trepadeira que rasteja
em busca de espaço entre as paredes,
e que depois se apodera da vida de outras plantas.

Prendeu-se aos alicerces mais firmes
e fê-los cair, bum!, o muro veio ao chão.
Era um muro cansado e encurvado.
A espinha dorsal duma vida de lutas
o destino de muitos - os com pouca luz para lutar, ou os lúcidos?

A planta venenosa volta-se contra o muro
seus espinhos soltam-se dela,
envenenam a barreira concretada
que na verdade descobre-se apenas um véu fibroso e denso
O próprio muro se percebe ultrapassado.
Mas será que ele se dá conta
de que ele foi o combustível de uma vida?
E será que está certo fazer de um muro um padrão de pensamento?


(Então, acho que não.)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Era uma vez

Era uma vez um gato xadrez
Um coelho atrasado um relógio parado
Um cão pequinês que contava até três
Pro Bush abobado chefe de Estado

Um presidente nazista e outro facista
Uma vaca voando e reis atolando
Umas noivas cantando e outras chorando
Um tal idealista bem realista

Uma menina, que de tudo fazia
Um homem bem macho que de medo morria
A mesa que andava e o chão que falava:
“Cuidado! Cuidado! Não sou mero assoalho!”

O cravo se vira e logo se irrita
Malditos sejam esses tais socialistas
E logo do lado faceiro se ria
Aquele piadista, um grande anarquista

Quando um porco dispara, no meio das palhas
E outros o seguem com sede de morte
Um cavalo a distancia já refletia
“Ora essa, enfim, o cavalo com sorte!”

E assim é a sorte
Com ou sem morte
Goste ou não goste
Era uma vez a roda que a cospe

Janela

Era espantoso perceber o quanto aquele homem envelheceu! Cada ano que passava, ele envelhecia dois. Ao que tudo indicava, ele tinha, neste momento, uns 120 anos, praticamente o dobro da minha idade. E eu o conheço há um bom tempo, desde que me reconheço como gente - aos 6 anos, talvez.

Sempre morei no centro de Florianópolis, Rua Vidal Ramos. O apartamento tinha dois quartos e eu, desde então, morava com a mamãe e o papai. Depois de anos, os dois se mudaram e me deixaram aquele canto que sempre morei e que escondia os meus segredos: a primeira namorada (que sempre ficava às escondidas da mamãe), a admirável vizinha Beatriz...

Ali, naquele apartamento, eu também conheci aquele homem, aquele espantoso homem que agora eu o vejo velho. Disse ''agora'', porque eu o já conheço de outros carnavais, quando novo era... Éramos, no início, de certa forma, fisicamente parecidos, apesar de eu não ser tão fisionomista. Divergíamos, porém, nas atitudes. E o que mais soava estranho é que somente eu podia vê-lo pela janela do meu abafado quarto.

Através dela, quando 11 anos tinha, vi aquele estranho beijar uma linda garota que me pareceu ser mais velha do que ele. Aliás, as balzaquianas eram, acima de tudo, sua preferência. Aos 16, vi, ao que tive a impressão, sua primeira noitada - se é que você que me escuta, lê ou sente entedeu. Pelos sussurros, pensei, de curta duração; não duraram mais que 4 minutos.

Daquele momento em diante este mesmo ritual, de quando em quando, se repetia: Ela entrava. Dizer ''ela'' é um eufemismo. Elas, uma a cada vez e em dias diferentes, entravam. Abria um cabernet sauvignon argentino, chileno ou sul-africano. Dependia muito do seu humor. A música, também como parte integrante do ritual, eu já sabia: Miles Davis. A luz era dum amarelo-queimado-romântico-francês (disse francês porque miticamente acreditam que os franceses são, sem exceção, românticos). Na sequência, ela despia-se. O fato se consumava. Ela despedia-se. Outro dia, quem sabe, ela voltaria. Particularmente eu não tinha mais esperença de revê-la com aquele instável homem.

Quantas e quantas vezes eu o via - isso apenas através da minha janela - só, concentrado, lendo e relendo a obra que a jovem mais delicada que eu notei ali adentrar lhe emprestara [O amante, Marguerite Duras] e que com tanto esmero ele, aquele misterioso homem, a tratou, quase como uma rosa. Com ela a música mudava. Cartola era o tema. E o silêncio era sagrado. Que bobagem! As rosas não falam...

Por vezes julguei que aquele homem era estranho. Indiferente, melhor dizendo. Noutros tempos me fiz acreditar que ele me era familiar. Agora seu físico se diferia - e muito! - do meu. A familiaridade se devia pelos gestos e atitudes. Cheguei (inclusive) a pensar que aquele homem bem poderia ser meu amigo. Devaneio meu, sem dúvida alguma.

Aquilo que eu gostaria de ter experimentado, ele já experimentara. Aos 18, notei que ele, por ser mais velho, tornara-se intelectual: Lia Marx e, naturalmente, concordava com o anarquismo de Bakunin. Enquanto eu tinha 18, ele aparentava ter trinta e poucos anos. E eu o continuava observando pela minúscula e decadente janela do meu quarto.

Ricardito, disse minha mulher na noite do meu sexagésimo aniversário bem no instante em que eu percebia aquele homem envelhecer, o que tanto você olha nesse espelho? És, por acaso, o narciso do século XXI?

Ali, descobri que o espantoso homem que tanto admirei envelhecera e que meu quarto, do contrário daquilo que tanto imaginei, não tinha sequer uma janela. Envelheci sem me perceber e fui ser sem ser percebido.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Um rapaz andava pelas ruas do centro de sua cidade. Bêbado, certamente; drogado, talvez; presente, jamais. O rapaz de fato estava num lugar escuro: o-salão-ecoante-dos-seus-pensamentos-assaz-fúnebres. Vinha a questionar-se: “mas que tipo de busca é essa? Essa aversão à realidade, de onde vem? O que há na verdade de tão ruim que me faz buscar o fim do copo, o fim do cigarro, o fim..?” Os pensamentos filosóficos para o que nos parecia, antes de sabemo-los, apenas um jovem ébrio qualquer, obtinham respostas parciais, sem que ele jamais conseguisse montá-las na Grande Uma ( thebigone, ha).

O salário que é baixo. A namorada que traiu. A mãe que criticou. Deus que inexistiu-se. As doenças que vieram.  A flor que é amarela. O corpo que é fraco. Tudo verdade, tudo verdade. Mas não muito, pois estando ele sóbrio, bêbado, chapado ou pilhado, nenhuma delas deixava de ser.

Os efeitos, agora, já vêm passando, e se o rapaz não encontrara a solução com eles, quem dirá sem. Logo ele cairá no sono-sem-sonhos dos alcoolizados e em 24 horas estará fazendo uma prova da faculdade, na qual responderá, inteligente como é, a todas as perguntas, mas seguirá sua vida sem nenhuma resposta.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Poema, poema... faz tempo
Sem forma ou com? Já não entendo.
Já não os entendo, já não me entendo...
E pra quê?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A certeza de estar só...lido


Havia uma separação. Sólida, separados pela solidez. Dois mundos estavam separados e essa separação era sólida: de um lado, um menino; do outro, uma menina. E a separação se dava por uma parede de concreto. Mas o que para mim não se tornava concreto era, com efeito, essa separação. Tão próximos, e, ao mesmo tempo, tão distantes.

Assim, pregavam os manuais de sabedoria que, assim se proclamavam, diziam-se modernos, contemporâneos, pós-modernos ou, quiçá, hipermodernos. Confundiam-se aos montes. Apenas uma coisa, dentro de todo esse imaginário temporal, eu considerava fato: a sólida separação.

Não sabia, ao certo, muita coisa. Apenas não entendia a solidão daqueles seres. Estavam solitários. E quando, assim me referi, digo, falo sobre os dois. Ele, com seu brinquedo, só. Chamava-se Bruno. Ela, também com seu brinquedo – creio que era uma boneca -, só, modernamente só. Li, dia desses, em Vilém Flusser, uma citação do filósofo José Ortega. Disse que ''eu sou eu e mais a circunstâncias.'' Depois filosofei – e também comecei a crer que a idade nos torna doutores em filosofia: a solidão também é uma circunstância?

Temo estar demasiadamente saudosista. Os anos – por instantes refleti – nos deixaram sós e a sós? Quem poderá entender o amor se se tem amado pouco? O saudosismo remói. E os fatos contados através dele têm sido desconexos e têm produzido efeitos desconcertantes. E assim tem sido.

Tínhamos, lembro-me da minha eterna infância, coisas em comum. Compartilhávamos machucados e histórias sobre beijos roubados. O que, isso nos dias de hoje, mudou? A solidez, estupidamente arrisco. Quem sabe ainda existam experiências a serem compartilhadas, mas, talvez hoje, resistimos – ou nos fazem resistir – a idéia de compartilhá-las, dividi-las e, quem sabe também por isso, as crianças vivem sós.

Soou o alarme: Jorge, é hora do seu almoço! Pára de resmungar e coma logo. E para não deixá-lo sozinho e falando sozinho, hoje e apenas hoje eu te faço companhia.









Quadro: Memória
Autor: René Magritte

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

"Seje" real ou não.

Uns dois ou três meses passados, diria que esse exercício da escrita, seria fruto de uma homoafetividade, pra não dizer outra coisa. Vivia pelos cantos a proferir contra este ato: "Ficar escrevendo em blogzinho não é coisa de um aluno do curso de história, deixo isso pro pessoal das letras." Ora pois! Estou aqui atrás desta maldita máquina digitando e a cada dia me torno mais escravo das letras, e olha que minha intimidade com a língua portuguesa não é das melhores, assim como um zagueiro pedalando com uma bola, tem o mesmo "sucesso". A escravidão as letras é livre de qualquer emoção, por isso, deixo ser dominado até o ponto que a razão tenha seu controle, e quando há espaço para algum tipo de emoção ou qualquer outro tipo de degradação do ser humano, escondo em locais mais "apropriados". Ainda existe dentro de mim alguém com um discurso que me agrada muito, até porque me afronta, esse alguém vive ao pé do meu ouvido: "Quem te viu, quem te vê moço. Isso não é coisa pra ti, um ignorante." Eu até escuto essa voz, até concordo em partes, porém, a discórdia e a provocação segue falando mais alto neste ser limitado. Assim como eu dou risada dos que se orgulham com suas baboseiras escritas, dou risada da voz que insiste em sua fala,  insiste em querer destruir  minhas tentativas de comunicação com os "dotados" de genialidade. Deixaria de me divertir às custas da intectualidade e seus poeminhas, por causa de uma voz? Prefiro caçoar de todos, sejam seres reais, ou simplesmente construções da minha querida e companheira loucura.

TOA

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

PARTE IV - Triste Hora

Triste a hora que a vida vai embora

Humanos se vão e os sucessores chegerão

Outras histórias, então, eles contarão

De que antes aqui viviam seres pouco desenvolvidos

Assim por eles eram os humanos conhecidos

Hoje já não importa mais

Tudo o quanto viera antes da Grande Paz

sábado, 15 de janeiro de 2011

Equívocos (só pra constar)

Com impulsos de gritar,
rasgo minha garganta e minh'alma num urro.
Vem do fundo de meu ventre
e transpassa o teto de meu quarto.

Numa alucinação motivada por minha loucura,
vejo meu grito tomar a forma de um cometa,
alçando aos céus até as estrelas
e indo cair na tua casa.

E tu tentas tapar teus ouvidos
pra tudo que quero dizer-te,
e mesmo que o faças não conseguirás conter
meu fluxo de informações que te agride

Faz-te sangrar e te corrói.
Faz com que teus dedos doam de frio.
Faz com que eu sinta essa dor lascinante no peito
que me dá vontade de gritar e chorar.

E no entanto eu não faço nada disso
Passado o devaneio eu estou apenas sentada.
Passada a loucura estou apenas apaixonada.
Passada a paixão eu estava apenas errada.

PARTE III - Hoje

Hoje acordei me sentindo diferente

Será que essa foça me veio de repente?

Foi procurando o pente que a foto vi na parede

Numa cama de hospital

Estava eu no colo maternal

Da foto de outrora e do tempo de agora

Quanto da vida já me foi embora?

Os dias são cinzas e o sol já não mais brilha

A água que existe a sede não mais sacia

A comida agora falta e a fome a todos assola

Seria o desespero que vira outrora?

Agora entendo naquela foto o porquê a criança chora

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Rio de Janeiro, gosto de você...

Teve um rio de lama como lava de vulcão

Inundação digna de tsunami

Árvore arrancada com fórça de furacão

Casa desabada como terremoto faz

Pilhas de corpos feito guerra...

...e era gente de paz

Migliaccio - JB 13/01/2011

PARTE II - Pobre criança

Pobre criança que chega nessa hora

Mas é essa hora de crespúsculo e não aurora

Que seu caminho você vê enquanto chora

"Porque tanta desgraça, injustiça e maldade?"

"Será isso o que chamam sociedade?"

Não há só maldade ou bondade

O mundo, vasto mundo, jamais seria pura e simples dualidade

O que se enxerga é apenas a ínfima parte do reflexo de tudo aquilo que não se vê

Há muito mais, oh criança do que eu, tu, ele e aquilo em que crê

Agora se acalma, deita e se coloca a sonhar

Quando acordar terá forças pra lutar?

Uma boa oposição.

- Faivert, quero muito ajudar o nosso Estado a prosperar, porém, com esse governo não tem como, nossas bases aliadas estão enfraquecidas, não existe a possibilidade de fazer política desse modo, nossa oposição é fraca, sem chances.
- Gabrioli, o que você acha primordial para nossa oposição prosperar?
- Senhor, primeiramente, devemos barganhar alguns cargos dignos, aliás, o mais importante é ter cargos e mais cargos, somente assim, podemos peitar eles.
- Vamos lá Deputado, vá enumerando o que você julga mais importante.
- Senhor, como toda oposição, precisamos causar a instabilidade no governo, afinal de contas, estamos ali pra isso. Sugiro que barganhemos o absurdo, até a situação se indignar e causar a primeira crise.
- Muito bem Gabrioli, e o que mais deveríamos fazer?
- O senhor sabe muito bem, que escândalos são bem vindos, quase conseguimos manchar a imagem do barbudo, com ela será mais fácil, não é tão carismática assim.
- Excelente Deputado Gabrioli, sua visão política é uma raridade neste país, precisamos de pessoas como você, com feeling para a prosperidade.
- Senador Faivert, só faço o meu trabalho como político, o meu dever é destruir aqueles que não são meu aliados, claro, sempre visando o bem.
- Entendo Deputado Gabrioli, porém, fica uma questão, e se o nosso inimigo político, for aliado do povo?
- Senador, isso é o de menos, só dar aquele aumento básico pra adestrar essa gentalha, ao mesmo tempo que enganamos eles, geramos um grande déficit nos cofres públicos.
- Perfeito Deputado, a partir de amanhã, terá seu aumento básico.

TOA

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

PARTE I - Um dia

Um dia acordei e não sabia onde estava

E nesse lugar havia alguém que chorava

Quem eram aquelas pessoas afinal?

Que com seus olhares me feriam mais que um punhal?

Eu apenas não sabia

Que com a água da chuva a planta crescia

O ser-humano dela dependia

Nos rios e mares muita dela havia

E também não sabia

Que nesse mundo muito mal também existia...

Justamente nesse instante então percebia

Que um dia acordei e não sabia onde estava

E vi no espelho que a criança cuja minha mãe segurava

Era eu que em seu colo chorava

Em desespero pelo mundo que me aguardava

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Dúvidas da labuta ou a incerteza sustentavél do ser.

Apresento-me:
Sou Lida.
Trabalho - e muito!
Só lida.
Lida do dia-a-dia.
Sólida?
Quem sabe.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O sagrado direito de duvidar.

“Grande e sem limite é minha tristeza. Ninguém sabe disso, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena.” (S. Kierkegaard).


Vim disposto a falar sobre Deus. E isso não é fácil. Nunca foi. Já rolaram cabeças e reputações por tal ousadia. Não pretendo ser a próxima vítima, por isso alego, em preliminar, que aqui não discutirei Deus em essência. Como poderia? Falarei tão-somente de algumas idéias que minha espécie – a humana – tem feito dele, ou melhor, Dele.


Falarei Dele porque Ele não fala comigo. E esse silêncio é insuportável. Seus supostos mensageiros, ah esses sim, falam demais, porém não convencem. Não é com esses que eu quero falar, quero o direito de ter uma audiência direta com o Pai, e com mais ninguém; quero perguntar-Lhe, à moda de Milton, frivolidades essenciais do tipo: por que transformou meu barro em homem? Por que me fez um animal metafísico que passa os dias a ruminar acerca de seu destino último? Por que sou esse serzinho que chegou à metade de sua existência provável sem ter a mínima idéia de se terá que enfrentar o Ser ou o Nada? Diga-me, Senhor Deus, sem metáforas, sem rodeios, sem intermediários, o que será feito de mim e dos meus?

Não chego aqui, então, para ofender carolas, beatos e suas crenças. Se podem crer firmemente – o que eu duvido – que se agarrem a isso! Não questionem, creiam, pois crer é mais útil do que saber. Os seres humanos não foram feitos para a verdade, não somos animais epistêmicos, fomos feitos para levar a existência como os camponeses de Montaigne: “Vão, vêm, pulam e dançam; e da morte nenhuma palavra.” Silêncio.

Outro dia minha filha de cinco anos perguntou: “Eu também vou ter que morrer, pai?”, Sim, um dia, respondi. “Mas por quê?”. Não sei, querida, só posso lhe dizer que há perguntas que quanto mais tarde a gente fizer, mais gostoso é o sorvete, mais doce é a noite e mais leve é a vida. Com mais poesia, Fernando Pessoa teria dito o mesmo:

“Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!”

Não tenho lá muita convicção de ter driblado a angústia da pequena Júlia. Mas, o que mais eu poderia fazer? Honestamente, dado que eu não tinha a resposta, só me sobravam o drible e o silêncio.

Mas Dele, eu posso exigir uma resposta que não seja um drible. Ele tem que me dar uma palavra sobre a morte e a vida. E tem que ser rápido, porque o tempo na Terra é acelerado para quem é mortal. Não posso por isso esperar a provável volta do Messias, pois temo já não estar aqui para recebê-lo. Eis o drama humano genérico encarnado em minha pessoal singularidade.

O que segue então é, à moda do que se faz em direito, apenas um embargo de declaração, recurso que interponho contra as lacunas e obscuridades presentes nas mensagens das religiões e seus heróis. O objetivo é simples: dizer que me deram razões insuficientes para crer e que viver assim não tem sido fácil.

Vamos ao texto.

Das provas da existência de Deus

Pesado e medido, acerca de Deus só temos provas testemunhais, aquelas mesmo que o velho jurista chamava de “a prostituta das provas”, dada facilidade com que se prestam à fraude. Se o testemunho for de um só, então o risco do engodo é tão considerável que a prudência romana não queria sequer ouvi-lo: testis unus, testis nullus.

O falso testemunho não é um problema relativo apenas ao estreito universo do Direito, na Ciência e na Religião ele também costuma aparecer, fazendo emergir um preocupante manancial de falsas alegações, falsas confirmações, falsos milagres e falsos santos.

Em adição, o testemunho humano quando não é frontalmente malicioso, corre ainda o risco de ser incorrigivelmente ingênuo. Nessa modalidade, a pessoa pensa que viu o que não viu, que ocorreu de uma forma o que ocorreu de outra, ou tira conclusões irrelevantes acerca do efetivamente visto. Assim não é raro um indivíduo dizer: “Eu posso dar testemunho de Deus, pois estava com câncer e me curei de uma forma que os médicos não puderam explicar!”. Ora, uma pessoa sensata só poderia disso concluir que sua cura estava fora do previsto pela Medicina e não que foi “Deus”, especificamente, que o salvou. Repare, inclusive, que um eventual crente no poder dos duendes poderia ter atribuído a eles a causa do seu “milagre”, - o que não seria logicamente diferente de atribuí-lo a Deus, já que os únicos fatos com os quais se está lidando, no caso, são a cura e a ignorância a seu respeito. Da ignorância não podemos derivar a existência de seres, quanto mais de seres específicos, ao estilo: “Só pode ser Deus”.

Por isso juizes e cientistas costumam ser bastante cautelosos com as testemunhas em geral. Pessoas ingênuas que vêem luzes no céu e que, por não saberem do que se trata, logo concluem serem “discos voadores”, e pessoas que identificam, “pelo jeito suspeito de olhar”, que o acusado deve ter sido mesmo o culpado são antes óbices que auxílio na busca da verdade.

O problema se agrava ainda mais caso as testemunhas forem de má reputação, ou se o seu testemunho harmonizar-se com seus interesses ou crenças. O testemunho de um médium sobre a verdade de um documento ter sido de fato produzido em estado de transe durante uma sessão espírita, é mais difícil de acatar do que o de um padre que, contra sua crença oficial, o confirmasse.

Boas testemunhas seriam, então, aquelas de boa reputação e não parcialmente interessadas no deslinde específico da questão.

Nesse aspecto as coisas se complicam para Deus, ou melhor para nossa crença Nele. Primeiro porque quase todos os testemunhos de manifestações de Deus provêm de funcionários de igrejas ou de seus mais fervorosos beatos. O testemunho de Saulo de Tarso seria nisso uma exceção, já que ele fora surpreendido por uma visão divina oposta às suas crenças, capaz de convertê-lo de perseguidor implacável de cristãos em seu embaixador máximo? Creio que não. Na essência, Saulo já era um crente, só migrou do Deus judaico para a sua mais notória dissidência, o Deus do cristianismo, - que nem é tão diferente assim. São extremamente raros os testemunhos de descrentes de verdade. Em regra, primeiro a pessoa se converte, depois recebe a graça de uma audiência particular com Deus ou suas hostes.

Mesmo a mais nobre testemunha divina – um certo carpinteiro – era pessoa má vista em sua comunidade, andava com pecadores, prostitutas, tinha pouca instrução, ainda que para os padrões da época. Não gozava de boa reputação geral, razão pela qual fora confundido com bandidos e equiparado a eles quando de sua condenação. Subiu à cruz sem conseguir provar a existência daquele que, segundo ele mesmo, faltara na hora marcada: “Por que Me abandonastes?”. Se o testemunho de Jesus não convenceu seus contemporâneos, que o mataram, por que convenceria as pessoas que dele só ouviram falar por relatos? Por que só uma escassa minoria dos que o conheceram pessoalmente levaram fé no que ele disse? Diante disso como aceitar facilmente que, muitos séculos depois, milhões de pessoas dizem-se tocados pessoalmente por suas palavras, como força viva? Seja como for, é certo que o impacto das palavras que Jesus pronunciou em vida foi imensamente menor do que aquele causado por elas após sua morte. Fruto da ressurreição, dirão alguns, ao que se responde: da crença na ressurreição, cuja garantia de ocorrência, novamente, depende do crédito que se atribua às poucas testemunhas que a alegaram, e que, logicamente, tinham interesse em propagar a história de que seu deus havia sobrevivido à crucificação.

Prova lógica

Conscientes de tais dificuldades, alguns funcionários da Igreja tentaram formular outras espécies de provas, cuja força não derivasse de relatos testemunhais. Santo Anselmo de Cantuária, ainda na Idade Média, foi um deles. Seu argumento ontológico constituiu uma criativa forma de validar logicamente a existência de Deus, sem que se precisasse apelar às sempre questionáveis verificações de fatos históricos.

Mais ou menos, dizia Santo Anselmo: por definição Deus é o ser perfeito, insuperável, e nosso entendimento pode compreender o que isso significa. Perfeito é aquilo que não pode ser aperfeiçoado, aquilo a que não falta nada, absolutamente nada, caso contrário não seria perfeito. Sabendo o que significa ser perfeito e que temos o entendimento de que Deus o é, pergunta-se: se Deus não existisse ele seria perfeito? Claro que não, já que lhe faltaria o mais essencial: a própria existência. Lembre-se de que ser perfeito significa ser completo, não carecer de nada, e quem carece de existência, carece de tudo.

Portanto, se Deus é perfeito, ele tem que existir. Se ele não existisse, não seria perfeito e assim não seria Deus. Em resumo: sem o atributo da existência, Deus não é perfeito e sem a perfeição Deus não é Deus, o que levaria a uma contradição lógica.

Deus existe, em verdade e lógica!

Apesar da elegância de tal raciocínio, que foi rejeitado por São Tomás de Aquino, ressuscitado por Descartes, e combatido por Hume e Kant, - já que derivava a existência de um ser a partir de atributos que a ele havíamos previamente atribuído. Com efeito, como poderíamos dizer que Deus é perfeito antes de termos presumido sua existência? Fica parecendo uma daquelas esféricas verdades chinesas: "Deus existe porque é perfeito e é perfeito porque é Deus".

Mesmo na época de Anselmo, seu argumento foi ironizado. Adaptando o contra-exemplo de seu contemporâneo Gaunilo (que era um monge católico), também poderíamos dizer: dado que posso conceber a idéia de uma mulher perfeita, ela terá necessariamente que existir ou perfeita ela não é, já que lhe faltaria um enorme detalhe: a existência. Isso demonstra que meu entendimento é capaz de criar conceitos absolutos, como perfeição, sem que necessariamente eles tenham que existir na realidade. Em outros termos, um raciocínio de linguagem só pode gerar resultados de linguagem, e não inferir, como logicamente necessária, certa realidade, quanto mais as absolutas.

O mesmo vale para o argumento da complexidade. O fato de haver muitas coisas complexas, de uma beleza ou harmonia incompreensível para a ciência (como o universo, as células, o olho humano) não significa necessariamente que são obras de Deus. Não podemos deduzir um ser para completar as lacunas de nossa ignorância. Da ignorância não se inferem realidades. Ora, se alguém dissesse no senado romano, alguns anos antes de Cristo, que a partir de uma caixa com um vidro na frente seria possível, um dia, assistir ao vivo a campanhas militares, como a de César na Gália, os sábios da época diriam que só os deuses seriam capazes de tal astúcia. Os índios sul-americanos tinham um deus para cada fenômeno que desconheciam. Deus e o inexplicável se confundiam. Isso significa que quanto maior for a ignorância científica de um povo, maior o espaço para o seu “sobrenatural”. Há de fato coisas que não somos capazes de entender, nossa ignorância é vasta, vastíssima até. Mas deduzir a existência de Deus por causa do que nos é incompreensível é fazer como os matutos que criam extraterrestres quando não conseguem entender o sumiço repentino de alguém.

Quando não sabemos o que causa algo, melhor investigarmos, aceitar com paciência a dúvida ao invés de povoar as lacunas de nosso saber com criaturas desejadas. Como disse Joubert, “mais vale examinar uma questão sem resolvê-la do que resolvê-la sem examiná-la”. O mesmo vale para a idéia de “as perfeitas leis do universo só poderiam ter sido escritas por...”, Deus? Ou por algum modo que até agora não compreendemos. Atribuir isso a Deus, sem mais, é comprometer-Lhe a reputação no caso de amanhã os cientistas encontrarem uma explicação materialmente razoável para tal.

Se Deus é perfeito, ele não precisa de nossas fraudes lógicas para confirmar-lhe a existência.

Evidências

Faltam evidências acerca da existência de Deus. Tudo bem que o Sol brilha, as estrelas reluzem no firmamento, a criança cresce e os amantes se deliciam. Mas igualmente há o câncer que corrói, o tsunami que devasta, a morte prematura que agarra, a cegueira de nascença. Parece até que, bem ponderado, a maldade cósmica para conosco supera infinitamente a bondade.

Pessimismo?

Por mais feliz que seja uma existência humana, ela é, à semelhança da lingüiça no freezer, dotada de prazo de validade. Poderíamos até vir com a advertência: “Consumir preferencialmente antes dos setenta anos. Depois, manter refrigerado e, por fim, depositá-lo no solo de forma ambientalmente correta”.

Se Deus de fato existir, Ele tem que nos explicar muito por que não disse que estava aqui. Por que nos deu a razão para dele duvidar e em função disso - pecado de pensamento - ser jogado no porão do inferno? Que urupuca é essa? Aceita-Me ou devoro-te!

Albert Camus tinha razão quando dizia que diante de nossa necessidade de resposta acerca do nosso significado no mundo e do silêncio na resposta – o universo não fala nossa língua -, a única saída era a revolta. Revoltar-se contra o silêncio, pela falta de gentileza de um ser aparecer e dizer: “Eu estou aqui”. Mas ao contrário, seguindo as crenças expressas pela maioria das religiões, esse ser mandaria seus eleitos, ao que parece, com uma única função: cobrar vassalagem. Devemos ser humildes, tementes, submissos, pormo-nos de joelhos, confessarmos nossos pecados, fazer de conta que não duvidamos. Por que o orgulho é um pecado. Pecado divino por excelência, pois é o que cobra mesuras e não os que as fazem que se considera acima dos demais.

Deus nos criou assim perecíveis, estúpidos, sujeitos a doenças, a vermes, tendo que manter comidas apodrecidas dentro do corpo, para que tivéssemos que lembrar, diariamente, do lixo que somos... Diante disso ainda vem pedir para que sejamos humildes? Não precisava, Excelência. Nosso orgulho é apenas uma forma de revolta, uma frivolidade menor, uma mania de nos fazermos de importantes antes que o ceifador sinistro venha rir por último. Nosso orgulho – como disse Victor Hugo – não é um vício, é apenas a prova do nosso ridículo.

Na história

Os deuses quase nunca foram flores que se cheirasse. Na maior parte das culturas, eles exigiam sacrifícios humanos, queriam virgens, queriam filhos. “E Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.” (Gênesis 22,2)”. Com o tempo, evoluíram e passaram a exigir apenas sacrifícios de animais (no caso acima, Deus teria se contentado com um cordeiro). Evoluíram ainda mais e, de acordo com seus procuradores na Terra, passaram a aceitar penitências, doações e hoje, em certas igrejas, aceitam até vale-transporte e ticket alimentação.

Ademais, se a idéia de nossos religiosos coincidir com a natureza de Deus, a organização política do céu parece mesmo é com o Brasil. Sua oração tramita muito mais rápido junto ao Padre-Eterno se você tiver um pistolão. Nesse caso, vou toda noite de Ave Maria, na esperança de que o “rogai por nós pecadores...” faça a minha oração subir sem maiores entraves burocráticos. Ora, ou o pedido é justo e Deus, sendo perfeito, irá atendê-lo, ou é indevido, e deve rejeitá-lo. O que não parece razoável é que, pelo intermédio de Maria, Ele mude de idéia, ou que precise dela para atentar para a justeza da solicitação – neste caso onde foi parar a perfeição?! Será que até no Céu só podemos pedir algo via advogados?! Ou lá, como em alguns lugares desse planeta, é mais útil para o convencimento do magistrado os amigos que se tem do que a razoabilidade do pedido que se faz?

Muitos sujeitos são devotos desse ou daquele santo, dependendo da especialidade do seu problema (se é casamento ou doença, cadeia ou intestino preso). Santos especialistas. “Matrimônio, matrimônio? Isso é lá com santo Antônio.” Parece até o cidadão comum dizendo: “Vou falar direto com o ortodontista.” ou “O meu vereador já disse que vai dar um jeito no meu IPTU”. É a idéia do santo especialista, do santo advogado, do santo despachante, do santo pistolão, do santo que faz jus a honorários, pagos em velas e ajoelhamentos. Isso sem falar das entidades pistoleiras de aluguel, que fulminam seus inimigos por módicas oferendas de encruzilhada.

Acho que alguém tem que falar ao Padre-Eterno que sua assessoria está levando por fora – em velas e preces - para fazer o que lhes seria devido por caridade. E o pior: seus mensageiros estão fazendo os pobres-diabos subir escadarias de joelhos, fazer procissões, pagar por celebrações, tomar banho de descarrego, comprar cachaça e charuto e dar o que não têm para os que não pretendem jamais descer do trono.


Revolta infantil

Essa revolta infantil aqui manifestada pode ser, na verdade, como dirão os críticos, um mero choro de criança contra as decisões do santo Pai que ele, por ser pequeno e estúpido, não compreende. Nesse caso, eu poderia antever qual seria a resposta do Eterno: “deixe-o chorar que quando ele crescer, vai compreender meus mistérios”, - os mais exaltados esperarão que um raio me parta!

Então vamos mudar a linha de argumentação, concedendo a Deus a gentileza do in dúbio pro Criador.

O deus do meu jardim

Será que a rosa sabe que o jardineiro existe? E se sabe, compreende suas podas e transplantes? Se Deus é o ser perfeito - o Sumo Jardineiro - eu seria, na melhor das hipóteses, a bonitinha, mas ainda assim estúpida rosa. Como querer compreendê-lo sem cair no ridículo? Minha existência de poucos dias me capacitaria para entender o eterno? Ou minhas conclusões sobre Deus seriam tão ridículas quanto a ilustrada por Fontenelle, ao relatar que “até onde qualquer rosa poderia lembrar nenhum jardineiro havia morrido.” Até onde este autor pôde notar, a presença de Deus não se fez sentir de forma indubitável. Mas quem é esse autor senão a rosa falando do jardineiro?

Pode ser mesmo difícil afirmar se Deus existe ou não. Vai ver até que as chances são iguais para os dois lados. E quanto mais pensamos mais confusas se tornam as coisas. Sagaz mesmo foi Tertuliano (155-220) quando afirmou: “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé não pode ser a razão, afinal Deus, com Cristo, se revelou a nós de forma absurda: ele poderia ter mandado um super-Aristóteles refutar qualquer problema lógico que pudéssemos esboçar à sua existência, poderia ter mandado exércitos de Einsteins viverem entre nós para satisfazer nossas demandas por verdades, mas não: ele mandou seu filho vestido na humildade dos ofícios manuais. Poderia tê-lo mandado assumir o trono na Terra, mas o mandou agonizar na cruz como um criminoso. Isso tem um caráter de ilógico, de absurdo, de milagre, de infinitamente diferente do que esperávamos... São as linhas tortas pelas quais Ele escreve...

É possível que Deus tenha feito isso porque sabia que a razão da rosa era incapaz de compreender a razão do jardineiro. Então, simplificou, mandando que escutássemos parábolas e relatos simples, até que um dia, quem sabe, possamos escutar explicações de verdade. Quando nossos filhos vão deitar, não lemos tratados de física quântica para eles, lemos coisinhas para que durmam, e dormindo, não nos perturbem com maiores interrogações. As parábolas tranqüilizam as crianças. Mais tarde eles terão chance de aprender... por enquanto, Deus zela pelo nosso sono...

Para que a inteligência se a crença desaconselha seu emprego? Sei lá... é estranho mesmo. Mas Deus parece ter essa mania: dá-nos a razão, porém - fórmula de Tertuliano - pede para que Dele nos aproximemos pelo absurdo; dá-nos desejos, mas exige que os controlemos; não nos dá certeza, mas quer fé inabalável. Diante disso a quem compararei este Deus? “É semelhante aos meninos que, sentados nas praças, clamam aos seus companheiros: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não pranteastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores” (Mt, 11). Ou seja, recebemos um baita equipamento cognitivo (nossa razão) e muitos comichões animais (nossos desejos e apetites), mas, pelo menos em face de Deus, não devemos usá-los. Esses foram nossos presentes e nossa maldição. Isso parece até uma parábola, de um pai que dera de presente para seu pequeno filho um isqueiro e uma garrafa de álcool, e quando este se queimou disse: “Néscio, por acaso não desconfiastes da tentação a que vos submeti? Porque não fostes prudente como a serpente, ardeis agora no fogo.”


Um deus terrível

A concepção que nossa cultura tem de Deus não é de um ser bondoso, mas de um ser que carrega em si todos os vícios dos monarcas históricos: vingador implacável, queimador de sodomas e pompéias, requisitador de súplicas, concedente de mercês, mantenedor de infernos e calabouços, negligente para com o sofrimento dos inocentes, criador de culpas presumidas e pecados originais, dono da verdade, senhor da vida e da morte. Todo-Poderosíssimo.

Ora, dirão, você não está falando de Deus, mas de uma certa compreensão sobre Ele, uma compreensão equivocada, na qual inserimos na figura de Deus nossos defeitos. Deus é infinitamente bom, má é a descrição que Dele fazemos.

É possível.

Mas há também outra possibilidade, terrível é verdade, mas que há, há. Se não somos competentes para interpretar a natureza de Deus, se projetamos Nele o que há de pior em nós, podemos igualmente ter projetado Nele também nossa aspiração de que Ele seja bom, justo e misericordioso. Se o compreendemos equivocadamente, se somos a rosa em face do jardineiro, podemos errar para os dois lados. Como saber se o Deus bom é o Deus que existe ou o que queríamos que existisse? Terei que voltar ao valor dos testemunhos...

Talvez Deus seja mau. Goste do espetáculo de ver-nos construindo nossos sonhos, cultivando nossas habilidades e celeiros para, na calada da noite, vir nos ceifar. Pode lhe ser cômico assistir à primeira espécie de animal consciente do seu funesto destino – a morte – debatendo-se impotente para dele se defender. É possível que seja mesmo hilário ver esse animal se travestir de herói, se encher de coquetismo, ir à Lua, criar teologias e tecnologias, gerar filhos e sonhos para, inexoravelmente, entregá-los ao implacável abismo que nos espreita...

Essa não é uma tese forçada. È a compreensão mais comum dos deuses ao longo do tempo. Dizem que as culturas indígenas do México se chocaram com a revelação dos padres católicos de que estes vinham representando um Deus que se oferecera em sacrifício, quando os nativos estavam acostumados a deuses que mandavam sacrificar. Ao longo da história deuses foram mesmo mais temidos que amados.

Estaria eu me afundando em absurdos cada vez maiores? Volto a repetir: de onde provêm as noções do que/quem é Deus? Alguém pode gabar-se de ter acesso direto a Ele? Ah, você confia na veracidade dos relatos que lhe foram apresentados. Tudo bem. É uma crença. Pode ser verdadeira, pode ser falsa, pode lhe ajudar a viver, pode ser muito, mas é preciso crer para ver.

A verdade, se há alguma, é que se não somos competentes para conhecermos nem a nós mesmos, o que se dirá da pretensão de dizer: “Eu conheço Deus no meu íntimo!”. Isso é tolice. Quem não se conhece em essência – todos nós – não pode ter a pretensão de conhecer algo/alguém supostamente muito maior que nós...

Mas há um tertium genus entre o deus todo bondoso e o deus maldoso: o deus indiferente. Um deus que não se ocupa das coisas humanas, que, talvez, tenha mais o que fazer. Um jardineiro desinteressado pelas suas rosas. Bem pesado e medido, esse é o deus mais fácil de defender a partir do absurdo desse mundo. Catástrofes e dores atrozes ao lado de belezas e prazeres. Contra-senso deliciosamente apontado por Machado de Assis: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Deus não tomaria ciência ou parte em nada disso. O mundo humano, com suas contradições, abundâncias e martírios, não Lhe seria afeito. Problema humano não atrairia a atenção do Sumo Perfeito.

Essa hipótese assusta.

É engraçado que os historiadores dizem que o orgulho humano foi seriamente abalado com a mudança do sistema geocêntrico para o heliocêntrico. Tenho minhas dúvidas. Não conheço ninguém que, na prática, esteja lá se importando se é o Sol ou a Terra que gira em torno do outro. Isso parece descrição de historiador das idéias e não das idéias na história. Até porque o fato de algo girar em torno de outro não significa o que domina o quê. Não precisaríamos nos abalar por tal mudança. Era só fazer o que de fato fizemos: modificar o conceito de centro de universo. É centro do universo o planeta que possuir a forma de vida mais inteligente. A Terra, pronto! O Sol que continue a mandar em outras plagas, na anatomia do universo continuamos no umbigo.

Agora se Deus fosse algo semelhante ao deus de algumas concepções teológicas, um deus que está de costas para o universo, que o move, mas nele não interfere. Se Deus fosse como eu em relação ao bem-estar das plantas de meu jardim: não me interessando se essa morreu ou aquela floresceu, me interessando apenas pelo todo: se o jardim está bonito ou não, aí sim estaríamos órfãos. Não boto nome nas plantas, porque elas são fungíveis – uma planta pode ser trocada por outra mais nova. E se Deus agir assim conosco? Se para Ele eu for uma individualidade fungível, uma formiga cujo sofrimento ou morte é incapaz de abalar a força do formigueiro? Então teremos sido retirados do centro do universo.

É por isso que nós homens sempre preferimos os deuses perversos a deuses indiferentes. Pois um deus perverso – como qualquer sujeito mau – dá importância as suas vítimas. Diante de seu altar pedimos clemência, misericórdia, mea culpa mea culpa. Agora diante de um deus indiferente nós pedimos, louvamos, xingamos e ele permanece em silêncio.

Pior do que as pessoas que nos odeiam são aquelas que nunca notaram nossa existência. As primeiras podem nos fazer mal e até mesmo nos extinguir, mas só as segundas podem nos convencer de que viver não vale a pena. O perseguidor nos atribui valor na exata medida que nos persegue, já o indiferente nos retira o valor proporcionalmente ao que não percebe.

Enquanto escrevo isto, sinto a nítida impressão de que estou sendo observado, de que vou ser castigado...Tranqüilizo-me! Pior seria se Deus sequer lesse esse desabafo...




Sandro Sell - um brilhante professor de Direito e Sociologia, autor da obra ''Comportamento social e anti-social humano (2006)", que escreve regurlamente no sandrosell.blogspot.com e culturadocontrole.blogspot.com

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Jurerê e sua surrealidade.

- Fala Renatão! Vai passar o Reveillon aonde meu caro?!
- Pô João! Fala sério, Jurerê é o que há de melhor nessa Ilha. Tudo que se poderia sonhar: gente bonita, mansões, carrões, só coisa de prima meu chapa, tô indo pra lá.
- E tu João, vai passar aonde?
- Meu querido, acho que vou ficar em casa mesmo, com minha família.
- Pô João, que sem graça! Vamo curti junto com a rapaziada lá em Jurerê. Quer coisa melhor que o mulheril de lá dando mole? Só alto nível.
- Poisé Renatão, eu sonho com a realidade, ficarei em casa.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Outras reflexões acerca da luz

A Vida É Como Alguém que vê a luz

Pois, olhando para ela,

Ao que se vê, é o passado que se enxerga

O presente é percebido pelo (seu) calor produzido

Já o tal do futuro, não é sentido, nem vivido

Pois, ainda é uma nova luz que se origina no infinito

E se agora a vida se finda

Duma fenda faceira outra brinda.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Sobre a inocência das flores

Não foram poucas as noites
Em que eu tentei escrever.
Não me faltava tinta, não me faltava disposição:
Nas manhãs seguintes, acordava com olhos fundos e lentamente,
Notava papéis brancos sobre a mesa.
Assim, brancos. Sem palavra. Sem uma letra sequer.
Por muito tempo não consegui transpor,
Aqueles pensamentos que em minha mente reverberavam.
E os papéis, brancos amanheciam.
Esse mal que me acometia, cujos contornos custei a perceber,
Era uma espécie de opressão velada imposta pelo meu jardim. Aquelas plantas bonitas que eu reguei com água fresca, cioso por vê-las crescer. Ah, sim! Não pouparei o jardim dos meus carinhos vãos, pois que havia ali rosas espinhosas que se rebelaram e se puseram a me oprimir, quando tudo o que eu precisava era vê-las florescer.
Não quero cuspir palavras de auto-enaltecimento. Não quero mais ter jardins. Desejo vê-los, sem ter posse. Pois que meus eles não precisam ser para que eu possa procurar a beleza que há em cada um deles. Eles não precisam de donos. Nada precisa.
E no fim de tudo, aquele algoz que me oprimia e me fazia fugir esteve sempre aqui, muito próximo a mim. Levava meu nome e tinha em seu rosto os meus contornos e meus cabelos brancos. E me fez pensar por muito tempo que a culpa era das flores...

Florianópolis, dezembro de 2010.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Sobre os ocos fogos tradicionais

Deitado em minha cama, no escuro, ainda conseguia ouvir os alegres fogos de artifício (ou seriam fogos de alegria artificial?). Na rua, centenas de jovens almas de branco festejavam “o novo”, abraços sinceros ou não enfeitavam a noite barulhenta e champagnes eram desperdiçadas a troco de alguma coisa que as almas velhas, como a minha, estavam em casa tentando descobrir o que era. “Eu poderia estar lá” pensei de modo forçado. “Eu quero estar lá?” Não. Eu já quis; naquele momento, entretanto, não queria mais. “Por que estão lá?” minha mente se confundia entre a calma do sono e o transtorno da insônia. A vozearia externa aos poucos se dispersava entre o tique-taque do relógio e a minha própria consciência que ainda processava. Quando finalmente senti o peso sobre minhas pálpebras, cedi. Permiti que elas fechassem e levassem-me para longe da balbúrdia combinada. “De que adianta” - ainda ponderei minhas últimas palavras – “De que adianta comemorar a inovação se dentro de si a mudança não acontece?”. Dormi.



http://portilloiulla.blogspot.com/