sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Manifesto saudosista

Dedicado à P.


                   Equivocam-se aqueles que em nome da língua portuguesa defendem a originalidade sentimental e estética da palavra saudade. Lembremos da Torre de Babel e dos processos linguísticos envolvidos em tal façanha: tinha-se o objetivo de construir uma torre que chegasse até o céu. Os arquitetos e construtores de tal monumento, pelo o que se conhece, falavam a mesma língua. Tudo transcorria bem até que o bom deus roga-lhes uma espécie de praga, sendo que, segundo o livro sagrado, as pessoas envolvidas nessa empreitada arquitetônica são castigadas a se comunicarem através de línguas diversas; o que parece, em teoria, impossível. Essa diversidade linguística, ainda na escrita divina, lhes trouxe caos e devido à incomunicabilidade a Torre, dessa maneira, não pôde ser concluída. Essa é a versão que nos foi apresentada, mas eis que milagrosamente apareceu uma outra que é apócrifa, diz-se que foi escrita pelo professor Woland, onde os fatos podem ser mais apurados pela solidez do conteúdo e a similaridade com os nossos dias.  
Segundo o professor, uma testemunha ocular do evento, a não concretização da empreitada daqueles que originalmente falavam a mesma língua, não se deveu aos problemas e complexidades idiomáticas. Os movimentos migratórios que quase sempre existiram e ainda continuam a existir na Europa não são impedidos tão somente pelo fator língua - apesar de Vilém Flusser construir toda a sua filosofia sob o pretexto que a língua criaria a realidade -, tanto é que hoje em dia não é difícil encontrar húngaros, poloneses e brasileiros que mal sabem falar os números em inglês, mas que, entretanto, moram e até trabalham na Terra da Rainha, apesar dos pesares. Com isso, o respeitável Woland chama a atenção para um fato humano, demasiadamente humano: A intenção de se construir a Torre de Babel foi, por si só, um atentado às entidades divinas, uma vez que o comportamento desses humanos foi como se quisessem se tornar deuses ou semi-deuses. Imaginando ser possível fazer o uso do anacronismo, seria dito que a Torre foi uma obra faraônica. Assim, a não concretização da Torre não foi devido à incomunicabilidade entre as pessoas relacionadas à essa empreitada esquizofrênica, mas sim ao jogo de interesses.
No início da construção, não havia separatismo ou sequer grupos que trabalhavam de modo isolado. A coletividade estava envolvida em prol de um objetivo: chegar até o céu. Quando este ocorrido chegou ao setor de notícias do divino – não podemos esquecer que os órgãos, inclusive aqueles pertencentes à burocracia divina, têm se setorizado cada vez mais -, dizem as más línguas que o todo poderoso enfureceu-se de tal maneira que acreditou ser preciso lhes rogar, como já descrito, uma praga, mesmo não sendo primavera. Para tanto, fez com que a até então única língua se confundisse, misturasse e que no lugar teriam diversas línguas. Que desnecessário!, pensou o professor Woland na ocasião. Mesmo com toda a diversidade linguística, a construção continuou e isso é o que não está escrito, afinal não se quer contrariar a vontade dos escritores bíblicos. A inocência nos forçaria a questionar como isso foi possível. Woland, antecipando a nossa curiosidade, respondeu que o projeto estava desenhado e as funções já estavam previamente designadas, antes mesmo da intervenção d’Ele. O grande problema, volta-se a dizer, foi o caráter humano, demasiadamente humano: pelos jogos de interesse, começaram a se firmar pequenos grupos. Houve separação. O projeto coletivo começou a se tornar mais individual. Fingiu-se não entender aquilo que já estava designado - é comum os humanos se esconderem por detrás de desculpas que possam justificar seus fracassos.
A partir de então, a Torre ficou apenas na lembrança, um sonho que não conseguiu ser concretizado. Assim, o leitor que conseguiu chegar até essa parte do texto é convidado a ser perguntar: o que a Torre de Babel teria a ver com a palavra saudade? Diferentemente de uma fábula, onde os olhares são voltados para a sugestão do autor, seja um autor defunto ou um defunto autor, aqui não será sugerido muita coisa. Também não haverá uma moral da história. Mas não te desanimes. Aqui, será exposto uma manifestação de repúdio aos supostos detentores das palavras, aqueles que acreditam poder cristalizar a vivacidade do universo literário, algo tipicamente acadêmico. Leia-se: imoral. Não se pode aprisionar as letras que transitam e que embelezam a transitoriedade do Ser. Então é preciso pensar em voz alta: Por que defender a exclusividade do dizer ‘’saudade’’? Não sentiria saudade um inglês, aquele que não detém essa palavra no seu vocabulário? As vaidades...

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