quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Do amanhecer

De minha infância guardo muitas boas lembranças. É só olhar pra trás que meu peito se infla de ternura, um ar nostálgico me invade o espírito e meus olhos de úmidos transbordam. Meus pais me deram muito amor, muito carinho. De afeto, tive a dose que uma criança precisa. Só não tive mais, pois meus pais trabalhavam boa parte do dia e não havia muito tempo para me paparicar. Eles são pessoas muito carinhosas e herdei um pouco desse carinho através dos vínculos que nos unem. Fui uma criança livre. Apesar de ficar sob os cuidados de minha avó paterna ao longo dos dias, que àquela altura era uma senhora de seus sessenta anos, e que, apesar da redundância não me furtarei deste comentário, era bem conservadora. Minha querida avó não gostava que eu atravessasse os limites de nosso quintal e fosse à rua ter com os meninos da vizinhança, mas mesmo assim me sentia livre, pois nosso quintal era mágico. Era grande e havia muitas árvores que davam flores de variadas cores de tal forma que durante o outono partes deste quintal ficavam cobertas por uma espécie de tapete amarelo, dada a tonalidade das flores e outras partes de um tapete vermelho. As flores eram cheirosas e macias e como eu vivia descalço, sempre sentia a maciez dessas folhas que cobriam o chão.
Fui disciplinado a dormir cedo, e por conseqüência, quando pequeno, acordava cedo sem que isso fosse um trauma, como uma naturalidade quase estranha para uma criança. A janela do meu quarto era grande e por entre sete e oito da manhã, ao sentir alguns raios de sol mais amarelados acariciarem minhas pálpebras, despertava feliz, pois sabia que era dia, e eu podia sair pelo quintal de minha casa. Aqueles raios inofensivos hoje pertencem a minha lembrança, pois hoje em dia é muito difícil acordar cedo, a não ser que eu tenha que fazer isso. E os odores matinais estão igualmente muito presentes em minhas memórias. O cheiro da relva que fora molhada pelo orvalho, ou antes deste, o cheiro de pão torrado na grelha, os pés sorrateiros se esquivando da vegetação úmida, já após o bom café da manhã... quantos pássaros haviam naquele quintal, muitos cantavam durante o amanhecer e parecia que cantavam para mim. Havia muitas árvores frutíferas. Pé de tamarindo, de cajá, de jaca, de abacate, de amora, alguns tipos de manga, jabuticaba, cana-de-açúcar, goiaba, graviola e provavelmente outros. Subir nessas árvores era muito agradável, sobretudo nos dias de calor. Elas eram como um abrigo do calor, pois conservavam um ar incrivelmente fresco abaixo de seus galhos e folhas. Estamos falando dos meus cinco, talvez seis anos. Um pouco mais tarde, já familiarizado com a vizinhança, os muros desse saudoso quintal já não se faziam tão altos assim.

Esse lugar situa-se no bairro carioca de Campo Grande. No século XIX neste lugar havia cafezais, e o Imperador tratou de esticar uma linha férrea até lá, de maneira a escoar a produção. Não por acaso meu pai encontrou, em nosso quintal, moedas do tempo do império. Ele colecionava moedas, tinha catálogos e sabia o que estava dizendo. Eram duas patacas com o diâmetro de uma goiaba, cor de bronze com alguns inscritos de difícil compreensão. Pode ser que outrora escravos tivessem trabalhado por ali. Pode ser que não. Pode ser que o brilho daquelas árvores tivesse o adubo de sangue. Pode ser. Alguém passou por ali, nisso eu creio, senão como aquelas moedas teriam ido parar em tão distante lugar?

Na medida em que crescia, pude perceber que os garotos de minha rua, que era meu incrível universo de criança, vinham de condição mais humilde. Com eles aprendi a andar em nosso universo com poucas vestimentas, uma bermuda comprida e um par de chinelos já estavam de muito bom tamanho. No Rio, pelas bandas de Campo Grande, faz sempre muito calor. Também me são inesquecíveis as memórias ligadas aos jogos de futebol. Lá futebol era coisa séria. O passe prevalecia sobre os demais fundamentos, mas o drible é pré-requisito para ser considerado no esporte. Acertar o outro não vale, é sujeira. Lá só podia jogar limpo e nem precisava de gente arbitrando. A bola rolava no meio da rua, que era de chão batido, à beira de um esgoto a céu aberto, conhecido por vala. Havia buracos, aos montes, e muitas pedras espalhadas pelo chão. Mas mesmo assim a bola rolava, todos jogavam descalços e não era comum ver gente se machucar.

Aos domingos o jogo era em outro lugar: saía de casa com meu pai, antes do galo cantar, escuro ainda, rumo ao Mendanha para o campo dos veteranos. Sim, o glorioso clube Veteranos do Mendanha. No meio da viagem pausa, carro estacionado e uma média com leite numa padaria de sempre. Em pé, de costas pro estabelecimento, manhã fria e copo quente na mão assistindo o sol nascer. Chegávamos ao campo bem cedinho e o pisar descalço no gramado era sentir a grama gelada, graças ao sereno da noite. Lá havia muito mato ainda, nos arredores do relvado, resquícios imperiais. Lá a modernidade é bem diferente dos grandes centros. Os amigos do meu pai chegando um a um, abraços fraternos, todos trabalhadores que suavam ao longo da semana e que no domingo acordavam mais cedo: domingo era dia de futebol. Nunca me destaquei com a pelota nos pés, no futebol aprendi a respeitar os companheiros muito mais que a dita cuja. E isso por si bastou, já fez valer a pena. Tinha por ai meus quinze anos. Nessa época, em períodos de férias escolares, o céu ficava repleto de pipas. E ali, quase tudo era feito de maneira artesanal. A pipa e seus acessórios e o fator decisivo pra sobreviver naquele céu em guerra: o cerol. Boa parte do carretel de linha era desenrolada de um poste a outro e assim se faziam muitas voltas. Cola de sapateiro derretida, vidro moído, bem moído separado em outro vasilhame. De preferência vidro de lâmpada fluorescente. Misturava-se bem o vidro com a cola e ai sim, tínhamos um cerol fino. Bom pra cortar as outras pipas, bom pra limpar o céu se a coisa estivesse complicada. Horas de trabalho pra pô-la no ar em condições de sobreviver.
Tenho muitas outras histórias a contar dessa fase de minha vida. E sobre Campo Grande, uma milhar de outras a contar. È engraçado. Poucos, além de quem mora no Rio, alguma vez já ouviu falar em Campo grande e quantas histórias esse lugar possui. O Didi, famoso folha seca, tinha um sítio por lá e... bem, é preciso ficar por aqui.
Hoje em dia, há mais de um ano tento contar uma história do novo lugar onde vivo e a coisa não é tão fluente assim. Possivelmente o fardo de estrangeiro emperra minha pena ao ousar contar histórias de um bairro que não é o meu. Não sou lá um cara moderno, tenho dificuldades onde ninguém tem. Tenho superstições e é aos poucos que vou entendendo que as fronteiras do mundo conhecido se estendem um pouco além das de Campo Grande.

4 comentários:

Felício Freire disse...

Campo Grande é um pedaço de interior dentro de uma metrópole, merecimento daqueles que tiveram infância em lugar como aquele. Fico feliz de ter com tais memórias, partes importantíssimas do infindo universo carioca.
Vale lembrar que Campo Grande é terra natal do eterno artilheiro cruzmaltino Valdir Bigode, hoje técnico da esquadra futebolística do bairro.

Poeta do Exílio disse...

Com certeza! E foi justamente na equipe do bairro que um tal de Dadá maravilha iniciou sua carreira. Já vi, inclusive, ele declarando isso no Jô Soares. Essa equipe já faturou a antiga Taça de Prata, que equivale a segunda divisão nacional. Hoje em dia tá caindo aos pedaços, mas o Bigode tá lá tentando levantar o time, jogando a série C do carioca.

Luccas N. Stangler disse...

Bela dedicatória a Campo Grande!

A infância realmente se torna importante - cada vez mais.
Percebemos, nela, o quão problemáticos (muitos problemas criados por nós mesmos, é verdade) somos quando adultos e como a criança tende a facilitar as coisas. É bom. É ruim. Não tem, em regra, meio termo. Não se relativiza. Ou é amigo ou não é. Café-com-leite [o meio termo] existe, apenas, no brincar de pega-pega.

Maravilhada fica a pequena criatura ao descobrir novos encantos: de jogar futebol na várzea a soltar pião - que saudade ingrata!

Mas nós, os adultos, é quem complicamos. Problematizamos discussões que não nos levam a lugar algum. Inventamos sistemas políticos que nos auto-excluem. Criamos um sistema - isso, o famoso "o sistema não permite" - e o pior: brigamos com o sistema. Mas quem é o sistema? O que é o sistema senão outro problema feito por nós, ex-crianças?

Abraço, poeta do exílio!

posseiro das palavras disse...

O que torna o período da infância tão belo é o fato de que muitas das coisas que narramos sobre ela nem sequer existiram.
São uma mescla muito peculiar de acontecimentos banais com a mais pura, e doce, imaginação - daquela típica das crianças - que infelizmente vão se apagando ao decorrer dos anos.

Não que com isso eu esteja duvidando de suas palavras, poeta, pois não estou. Talvez esteja apenas com um pouquinho de inveja por não ter crescido em Campo Grande.

Belo texto!