terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cenas Urbanas I – O Despertador

- Alô, você vem pra cá agora?

- Porraaaa!!!! Eu posso dormir por acaso? Você me deixa dormir? Quem é você para invadir o meu espaço? Não percebe que moro aqui debaixo dessa marquise? Eu moro nessa merda, porra !!! E você, seoporra, que pensa que é gente só por que veste terno de microfibra e calça sapato italiano. Eu sou e estou nessa merda toda, mas eu sei o que você veste o que carro que você tem, eu conheço tudo o que me cerca, e vejo além das coisas. Ao contrário de você seoporra, que passa por aqui todos os dias e nunca me viu ou se viu, fez questão de esquecer. Sabe por quê? Por que faço mal a quem se atreve a me olhar. A minha sujeira, a barba de imperador sem trono, as unhas podres com os restos dos restos do que comi ontem, o mau cheiro que exalo e prenuncia minha morte. Mas eu não posso desviar de vocês. Estou sempre aqui nesse emaranhado de papelão me virando com as sobras de cobertores, a agüentar vocês. Você sabe o que é precisar dormir mais do que o necessário por que sua cama é o chão? Não sabe, né seoporra? Eu vou te chamar de seoporra, tá entendendo? É isso que você é! Eu já não durmo direito, e logo cedo além da luz do sol, chega aquele puto do gari, outro merda que nem você, ele chega assoviando alto fazendo estilhaços no asfalto com a vassoura e a pá numa disposição de quem está de férias, você sabe o que é isso? Nem um travesseiro me livra desse tormento. Depois descem em carreatas as senhoras decrépitas com seus carrinhos de compra. Sabe como é? É este o meu café da manhã. Eu vejo melão, laranja, maçã, pêra descendo a ladeira e me contento só com as cores. Isso me alimenta. Agora até que está bom. Este novo canto não é de todo ruim. Aqui não tem guarda pra apertar com o cassetete a ponta do meu nariz. Dormir na fachada de um banco é mais perigoso. Mas eu ia me esquecendo de você seoporra! É falta de educação deixar o outro desamparado na conversa. Mas não te devo maior confiança sobre meu dia-a-dia. Um dia após o outro é sempre assim. Minha vida é pública, mas ninguém a vê.

2 comentários:

Poeta do Exílio disse...

A urbe é cruel. Seu surgimento foi possível após, obviamente, a domesticação das sementes na chamada revolução neolítica e aparentemente era pra melhorar a vida das pessoas. E melhora em diversos aspectos. Mas tem seus lados cruéis. Contém desigualdades, muitas verticalidades.
Caro escritor, seja bem vindo! Aguardamos novos retratos!

posseiro das palavras disse...

Caramba, estou perplexo!

muito bom!