terça-feira, 9 de novembro de 2010

Uma história pra lembrar e contar: a vida para amar

Papai, ainda me lembro, sempre dizia “cuidado com a hipocrisia”. Ouvi algumas vezes esta frase. Ele sempre procurou nos passar valores éticos e um pouco de moral, uma moral humana. No começo não entendia essa tal de moral, mas a ética era como um guia a me orientar em minhas escolhas. Aprendemos com ele a valorizar a vida, afinal uma pequena semente poderia se tornar uma enorme árvore e “a lagarta que rasteja até o dia em que cria asas”, ao batê-las aqui pode provocar um furacão em um lugar do outro lado do mundo! Toda forma de vida devia ser respeitada. A semente de hoje era a comida de amanhã. “A mãe-terra nos dá tudo o que precisamos”, dizia ele, por isso tínhamos que cuidar bem dela! No lugar onde crescemos havia muito verde, de todos os tons; cores das mais lindas quando chegava a prima mais querida, a primavera; muitos bichos – grandes e pequenos – e por vezes saíamos nas noites primaveris a procura das fadas! Tudo que precisávamos saber papai e mamãe nos ensinavam. Boa parte de nossxs amigxs iam ainda para escola. Mas nós aprendíamos com nossos pais as importantíssimas lições da vida as quais, diziam elxs, não encontraríamos nas escolas. Além disso as escolas ficavam longe, na selva de pedras – uma das mais terríveis, em que pessoas matavam pessoas, com ou sem motivo, um verdadeiro absurdo, e quanto medo nos dava ao ouvir essas estórias nas rodas de contos a beira do fogo em noites estreladas – em que a cor predominante era o angustiante cinza. Claro que nem tudo era maravilhoso, por vezes ficávamos de castigo por aprontar travessuras, bem como, em brigas entre irmãos, e papai nos fazia ir com ele em suas andanças pelas hortas, casas em construção, pescar, e nos ensinava como as coisas funcionavam, que uma casa não se começa pelo telhado “ela tem que ter uma base forte antes” e que criar animais, cultivar hortas, não poluir o rio, acabavam por criar bases para sobrevivência humana, contribuindo para saciar a fome e a sede.

Certo dia papai estava atônito e triste. Chegou pra mim e disse “filha você está crescendo”. Após essas palavras seu semblante se fechou; suas pálpebras reprimiam os olhos para baixo e uma luz correu seu rosto, era uma lágrima a qual ao cair no chão causou-lhe uma pequena deformação e se transformou em milhares de outras gotículas a molharem a grama. “Vou lhe contar uma história e preste muita atenção”.

- Há algum tempo atrás, cerca de uns 600 anos mais ou menos, o mundo começou a mudar para o que é hoje. Houve uma crise. Muitas pessoas morreram por motivos de doença, guerra e fome. Pouco a pouco os burgos (cidades) aumentavam cada vez mais e tornavam-se paulatinamente mais importantes. A nobreza entrava em decadência. A monarquia se fortalecia. Os mercenários ganhavam importância. Isso se deu num continente que leva o nome da deusa Europa.

Nunca tinha ouvido desta história até então! Deusa Europa?! Mercenários?! A 600 anos atrás?! Seguiu um breve silêncio naquele ponto. Ele procurava retomar o fôlego. E continuou.

- Deram-se inicio as grandes navegações. Descobriram então que o mundo era maior do que pensavam quando acharam essas terras. Mas elas já possuíam moradores. Esta história é sobre a ganância humana. Pois, mesmo os que aqui já habitavam, outrora também expulsaram e mataram os que antes viviam cá. Isso tudo - a largo passo – foi motivado pela ganância de pessoas ricas que queriam cada vez mais as riquezas só pra si, evidenciando desta forma, outra cruel faceta humana, o egoísmo. As instituições modernas foram forjadas. Muita coisa importante foi pouco a pouco esquecida. Os burgos – as cidades, selvas de pedras – cresciam cada vez mais. O cinza foi tomando conta do verde, a sujeira dos rios e muitos dos animais desapareceram por completo, a não ser pela memória. Inventaram as fábricas que jogavam dezenas de metros cúbicos de gases tóxicos no ar. Logo vieram os carros e já não tínhamos mais lugar por onde andar. Criaram os aparatos repressivos a obedecê-los e a nos bater, calar, torturar e matar. E diante da fumaça e desgraça que a gente teve que tossir resolvemos resistir e lutar. Mas as estruturas estavam contaminadas e assim, contaminavam as pessoas. Tivemos que fugir. E aqui chegamos. Sempre hesitei este momento, mas é chegada a hora em que você terá lidar com essas coisas sozinhas. Não podemos mais nos esconder do mundo. As cidades estão chegando. E lá se dará uma nova etapa de sua vida.

Não queria acreditar no que ouvia! Não podia ser verdade! Não queria ir pra cidade. Corri desesperada mata adentro. Corri, corri e corri sem parar. Suava frio quando cheguei à beira do rio. Estava cansada, assustada e com sede. Comecei a controlar a respiração novamente. Pouco a pouco aflição foi cedendo. Agachei-me e posicionando uma mão sobre a outra fiz um “copinho” para apanhar um punhado de água que corria pelo rio. Alguma coisa havia mudado. Podia sentir isso no gosto da água, no soprar daqueles ares. Não era mais o mesmo rio e eu não era mais a mesma mulher. Dias depois daquela conversa papai e mamãe foram assassinados. Antes disso nos mandaram para cidade na casa de parentes. Aquela fora a notícia mais triste que já recebera em toda a minha vida. Era tudo muito estranho. Mas uma frase martelava em minha cabeça “cuidado com a hipocrisia”.

Aos poucos comecei a sair do quarto. Voltei a comer. A comida nunca mais teve o mesmo sabor. O que era aquilo que comiam na cidade? Pra mim não era comida. O medo da selva de pedras ainda se fazia presente. Estava olhando pela janela da sala a rua. Era uma grande janela. Então pude ver o tempo mudando. Ao longe vinha uma imensa, gigantesca, nuvem escura. Dela saíam muitos raios, trovões! Mas poucos atingiam a superfície. Corri para o quarto e me escondi em baixo das cobertas. Foi quando lembrei certa vez de uma pequena planta. Era um dia tenebroso como este com milhares de raios e trovões e pensava “coitada da pobre plantinha sozinha lá fora”. Na manhã seguinte corri para ver como ela estava. Seu estado era drástico. As folhas caídas pareciam demonstrar sua tristeza. Papai então chegou e me disse “não fique triste minha pequena, as raízes estão firmes, a base está forte, ela irá melhorar”. Essas palavras acalmaram meu coração. Dia a dia ia lá para ver a pobrezinha. Na primeira semana as coisas pareciam não mudar. Quando veio a segunda semana pude ver o que os olhos não permitiram. As raízes estavam fortes mesmo como papai disse e as folhas voltavam a flutuar entre o caule, o céu e o chão, desafiando novamente a gravidade que as colocara para baixo. Não podia mais ficar ali, escondendo-me para sempre embaixo do lençol. Dei um pulo de súbito! Coloquei um calçado e saí pela porta! A tempestade já havia passado. Tinham crianças na rua a jogar bola e se divertir das mais diversas formas. Estranhei aquela cena. Por muito havia guardado apenas aquela imagem apocalíptica da cidade. Foi então que percebi. Quando papai me falou aquilo não era pra me amedrontar, mas para me alertar das atrocidades que ocorrem nas cidades, principalmente nas grandes. Os pais daquelas crianças das ruas não eram iguais, alguns se pareciam com os meus outros eram os gananciosos e egoístas que papai nos prevenia. E estes falavam muito bonito para inglês ver (ou seria melhor: para norte-americano ver?); falando de sustentabilidade, ética, justiça, quando o que lhes importava era o dinheiro, aquele “pedaço de papel sujo, que nem pra limpar a bunda serve” dizia mamãe em suas discussões com sua irmã, nossa tia. E nessa correnteza eu notei a essência da frase martelo, pois a nossa maior luta chegara, a luta pela vida! Estávamos nas ruas protestando! As empresas sintéticas pretendiam dar o golpe final! Nesses tempos a artificialidade tomou conta da vida. Denominavam os sábios isso como sendo a “anti-vida”. O individualismo nos isolou por duros anos, até este momento. O Chefe de Estado então decidiu se pronunciar. Seu partido era tido como de esquerda.

- Cidadãos e cidadãs!

Logo pensei, pra quem este palhaço está falando?! Nunca ensinaram cidadania em suas políticas públicas...ah, sim, cidadãos são os abastados, assim como, na antiga Grécia, de forma bem diferente, obviamente.

- Estamos aqui para manter o Estado-democrático de direito!

Milhares de forças repressoras asseguram o discurso do chefe e muito bem equipadas nos ameaçam de diversas formas, inclusive de morte.

- Deixem essas questões para os órgãos responsáveis! Entoava ele.

Curiosamente neste exato momento a ficha parece ter caído a todxs! Estávamos frente a frente com a hipocrisia. Os órgãos competentes eram extremamente incompetentes para com os vidamantes, demonstrando na maioria dos casos completa indiferença para com nós! Pude então entender a tal da moral! Mas esta que nos despejavam a torto e direito não era humana. As campanhas eleitorais eram uma das maiores peças a qual esta humanidade presenciava! Criminalizavam as drogas e fomentavam o tráfico, o qual sem pagamento de tributos ao Estado entrava já sob a forma de dinheiro nas campanhas, aumentando o endosso dos famosos “caixa 2”, acabando também por fomentar a violência. Não permitiam ao pequeno cultivar sua comida em terras protegidas pelas leis ambientais, mas garantiam o aval de construções com enormes impactos ambientais naquelas regiões sem nenhuma forma de punição para esses figurões, como enormes represas – as quais acabavam por alagar imensas áreas – estaleiros em águas rasas, dentre outras. O dinheiro produzido com nosso suor, nossas vidas, ausência – muitas vezes – de carinho e atenção para com os nossos, era – através dos impostos – dado aos banqueiros e outros exploradores da vida alheia. E a nós? O que resgatava agora? Nem mais migalhas! Nem mais migalhas! E parece que de uma forma mágica ou racional, não sei, essas palavras ecoavam nas cabeças de cada um(a) ali presente! E repentinamente começou! Em uníssono:

- Não mais migalhas, vida a quem trabalha! Não mais migalhas, vida a quem trabalha!
- Não mais migalhas, vida a quem trabalha!

E o que começou aos poucos de forma tímida, foi tomando conta de tudo e todxs! Tão logo assim o foi, que xs humanxs por trás das fardas puderam perceber novamente a vida! E o que tinham feito a ela! Aquilo não podia continuar! E começaram a entoar ainda mais alto:

- Não mais migalhas, vida a quem trabalha! Não mais migalhas, vida a quem trabalha! E começamos todas e todos a marchar em direção aos(as) tiranos(as)! O chão tremia! Aos “déspotas” se notava agora um extremo medo, terror e pavor em seus olhos! Foram cercadxs e obrigadxs a se render. A humanidade não era mais a mesma. Sabíamos o que fazer. Não precisávamos de mais ninguém a dizer como as coisas tem que ser feitas! Não mais Estado e aparatos repressivos, não mais patrão, uma nova Era parece emergir.

E tão logo a vitória chegou, colocamo-nos a nossos afazeres. Os inimigos de ontem são no máximo hoje como animais peçonhentos, sem muito que temê-los, mas tendo o cuidado de não pizá-los. Agora não precisava mais trabalhar todo dia, muitos menos fazê-lo guiado pelo tempo do relógio. Agora acredito que meus filhos poderão viver num lugar mais justo, um lugar que nossos pais lutaram e sonharam, um lugar pra chamar de lar, um planeta pra amar, um lugar para sempre lembrar. De terra e mar; beber da água do rio pra sede saciar, ir para onde quiser e sem nenhum papel a nos condicionar. Novamente a voz prevalecerá. Temos uma vida pra amar.

Nenhum comentário: