segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O dente.

Acabara de ler Gogol - O nariz. Soltou uma leve risada e admitiu que a literatura russa era para poucos. E talvez ele também estivesse incluído dentre esses poucos. E isso ele também admitiu.

Levava uma vida medíocre: pela manhã, duas torradas e um longo gole de café. Meio atrapalhado, às pressas, saía para o trabalho. Caixeiro-viajante, sua profissão.

Gabava-se de suas conquistas. Já se deitara com algumas mulheres - e acreditava que havia pouca variação nesse gênero. Um olhar despretensioso, uma abordagem engraçada. Trajava, ao cortejá-las, uma máscara de intelectual. Caía-lhe bem. E isso ele também admitiu.

Pela tarde, a labuta. Vendia relógios cucos. Cada dia estava em um local diferente. Em qualquer parte de sua viagem, sempre parava e apreciava, pelo menos, um longo gole de café. Trazia-lhe um pouco mais de ânimo.

Elas, as cortejadas, diziam adorar homens diferentes, mas em nada mudavam. Nem faziam questão, talvez. E ele - pacientemente - sabia que reclamariam: todos os homens são iguais. Mas ele não, ele era diferente, diziam elas ou ele mesmo se fazia crer.

Acabara de ler Gogol – O nariz. Soltou uma leve risada e admitiu que a literatura russa era para poucos. Ao sorrir, notara que lhe faltava um dente. Não, não era um dente, e sim o dente. Que situação!

Resignava-se ao ouvi-las reclamarem. Os fins justificam os meios; leu, provavelmente, numa edição reader`s digest. E o fim, para ele, era a conquista.

Crendo ser meio absurdo a perda do dente – lera que o major Kovaliov havia perdido o nariz, mas não, o dente não! Como, sendo um caixeiro viajante, sujeito de admiráveis conquistas, iria lidar com toda essa situação? O que pensariam as moçoilas de tudo isso?

Pela noite, postava-se defronte a Júlio Cortázar, Mario Vargas Llosa ou Émile Zola. Entrecortava as páginas. Lia-os em pormenores e simultaneamente como se fossem os últimos escritos – portanto valiosíssimos – da humanidade.

Levava uma vida medíocre. Mas agora lhe faltava o dente. Gabava-se de suas conquistas. Mas agora lhe faltava o dente. Pela manhã, pela tarde ou pela noite. Ainda lhe faltava o dente. Nada mais importaria em sua vida. Faltaria o dente.

Lembrou-se: há situações que beiram o absurdo. Onde estaria o dente? No mesmo lugar de sempre: em sua boca, de onde nunca saiu. Os detalhes..

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