quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Transição

Afundei meus dessabores no fundo de um copo de cachaça. Sentada no bar, eu ainda podia sentir no cabelo o perfume barato daquele que fora meu acompanhante durante a noite. Provavelmente eu nunca mais veria seu rosto barbado, mas aquilo não me inquietava, queria mesmo era ficar sozinha com meu copo, lembrando e esquecendo as memórias que um dia foram minhas. Já não era mais a mesma, mas também não sabia quem seria. Por um momento senti-me invadida por um imenso nada; um vazio tão grande que corroía qualquer espécie de sentimento que um dia pudesse ter existido em mim. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, imóvel. Presa entre a inércia de meu passado e futuro, meu presente era o momento em que me esvaziava de mim mesma.

Voltei a mim quando senti uma fisgada no ferimento em meu punho; ainda sangrava, mas o corte não poderia ter sido tão fundo assim. Foi a dor, como em tantas outras vezes, que me trouxe de volta a realidade. Mas eu tinha resolvido abandonar a dor e ignorei a ardência que sentia no punho. E então me lembrei do tango, minha nova vida merecia um tango.

Atravessei a cidade até chegar numa das poucas casas onde era tocado um bom tango e no caminho arquitetei minha mudança para Buenos Aires. Era na cidade argentina onde eu deveria morar a partir dali, era lá que minha vida começaria novamente. Ah! Se o tango falasse. Diria que me chamou naquela noite de outubro.

4 comentários:

Taiane Maria Bonita disse...

Outubro de 1923

Poeta do Exílio disse...

Aprecio os escritos da Cacilda já não é de hoje. Lendo mais esta graça talentosa produzida por ela, fica evidente que aquelas linhas interessantes estão cada vez mais robustas – de um certo jeito... de coisas sedutoras, de letras “carismáticas” – direi assim. E confesso que fiquei particularmente feliz quando percebi sua atualização, que acontece depois de um bom tempo de sumiço.
“um vazio tão grande que corroía qualquer espécie de sentimento que um dia pudesse ter existido em mim. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, imóvel. Presa entre a inércia de meu passado e futuro, meu presente era o momento em que me esvaziava de mim mesma.
Voltei a mim quando senti uma fisgada no ferimento em meu punho; ainda sangrava, mas o corte não poderia ter sido tão fundo assim.”
Foi por essa passagem, à parte nessa graciosa historieta, que disse o que disse acima.

Luccas N. Stangler disse...

Verdade - uma obra prima!

Ana T. disse...

Perfeito.